A Melancolia do vampiro

A primeira coisa que se vê em "Branca de Neve" é a melancolia. Muito menos a "provocação" que vem associada a este filme todo a negro, onde só se ouvem as vozes que lêem "Branca de Neve", na "versão" do escritor/poeta suíço Robert Walser (1878-1956). De tempos a tempos, como momentos de respiração, surge uma imagem no fotograma - segundos de céu azul -, antes de tudo voltar a mergulhar na escuridão.

Não é, portanto, um filme em que não se vê nada, embora a expectativa de "escândalo" que vem sendo construída (e que levou a uma preparação de estreia mais do que discreta, essa sim, realmente "invisível"), se arrisque a que se olhe só para o buraco negro - ou que se olhe para todo o lado menos para o filme.

É uma obra frágil, se calhar de recolhimento, onde um cineasta, João César Monteiro, de quem se esperam sempre "transgressões" e que se sente obrigado a cumprir a sua "lenda", resolveu estar de forma invisível num pequeno sonho que tacteia a morte.

Estar invisível quer dizer, aqui, estar do lado de um louco e de um morto: Robert Walser. É com as fotografias do seu cadáver na neve, onde Walser foi encontrado, que o filme arranca, logo a seguir ao genérico. O que se segue poderia ser um "zoom" impossível para além da superfície dessa imagem, ou seja, algo de intransponível, sem imagem possível.

Loucura, lenda e morte. Nos seus delírios paranóicos, Walser retirou Branca de Neve, a Rainha, o Caçador e o Príncipe a Grimm, arrancando-os ao conto tal como o conhecemos da infância. O beijo do príncipe acordou a donzela do sono eterno da infância, mas com esse sopro de vida as personagens tornaram-se, irremediavelmente, algozes da sua pureza. Sem espaço para o mito, vivem num tempo de aceleração esquizofrénica, onde ligeireza e crueldade são, paradoxalmente, manifestações (monstruosas?) de uma lucidez demencial. E com a enorme nostalgia de uma perda. É João César Monteiro puro, mas reencontrado aqui em Robert Walser.

Não se pode dizer, sequer, que "Branca de Neve" seja um gesto "conceptual" ou "experimental", embora experimente - a isso se deve responder com o mesmo sentido lúdico, com a mesma dose de ironia - com os rituais de visão e projecção de um filme numa sala (por exemplo, será tarefa árdua para o projeccionista encontrar referências para acertar o foco).

Nem sequer a radicalidade é inédita. Este é um gesto mais inocente e desarmado. "Em vez de olhar, prefiro escutar", diz uma das personagens. Monteiro faz-se cúmplice de Walser, e assim se ouve o barulho da neve a cair. Ao negar a figuração, "Branca de Neve" resgata a pureza do espectáculo assombroso de fantasmas do outro mundo (sim, o vampiro continua por aqui) que foi o cinema. Essa é a nostalgia, e o sentido da perda, que às vezes comove neste pequeno filme.

A propósito de morte, é lícito interrogar se não há aqui um cineasta que se "apaga" ou que se suspende voluntariamente - por uma consciência aguda dos seus limites ou dos limites dos caminhos do (seu) cinema. O que quer que seja, no caso do cineasta/actor Monteiro, só invisível, só negando-nos o (seu) corpo e a (sua) "lenda" (que tanto explorou na trilogia "Recordações da Casa Amarela", "A Comédia de Deus" e "As Bodas de Deus"), o vampiro consegue ser assim, tão desarmadamente humano. Não conseguindo, nem querendo, destruir a inocência do conto. Antes, juntando-se a ele, do lado de lá do escuro.

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