Olhó Robô!

Steven Spielberg já contou que enquanto escrevia o argumento de "AI: Artificial Inteligence" (o seu primeiro argumento desde "Encontros Imediatos do Terceiro Grau") sentiu o fantasma de Stanley Kubrick a soprar-lhe ao ouvido. Também ainda em vida de Kubrick, Steven sabia que não seria fácil, devido à presença intimidante do realizador de "2001-Odisseia no Espaço", os dois trabalharem juntos num projecto com que Kubrick o aliciava - nos anos 80 contou-lhe a história de um menino robô que queria ser humano (baseada no conto "Super-Toys Last All Summer Long", de Brian Aldiss, de 1969) e propôs-lhe, com um sorriso diabólico nos lábios, que os dois fizessem "uma produção de Stanley Kubrick de um filme de Steven Spielberg".

O cerebral Kubrick considerava que "AI" era a história ideal para o sentimental Spielberg - é que achava, além disso, que, como teria de usar um actor-criança e as suas rodagens demoravam sempre muito tempo, o menino iria crescer e alterar a natureza do projecto; Spielberg, não, encontraria logo a sua direcção.

Mas o realizador de "ET", ao ver a máquina de fax instalada em sua casa (uma linha que foi estabelecida entre os dois cineastas, para trocarem dados sobre a colaboração) não parar de debitar papel, ideias e desenhos, intimidou-se perante esta omnipresença e afastou-se.

Só depois da morte de Kubrick, é que Spielberg - "não como encomenda, não por homenagem, mas porque 'AI' é uma bela história e é isso o que eu sou, afinal, um contador de histórias" - enfrentou esta versão contemporânea de Pinóquio.

E assim, a partir de um esboço de sete páginas que Kubrick deixou e das visões contidas numa série de desenhos e esboços (cerca de 1000) - e, vá lá, com a ajuda do espírito... - o mundo de Steven Spielberg ficou mais perverso e mais dilacerante em "AI: Artificial Intelligence", que teve ontem a sua estreia europeia no festival de Veneza.

David é um menino robô. A última maravilha da cibernética para os casais que não podem ter filhos. Porque o robô pode ser um filho ideal. Tem sentimentos.

David é entregue como encomenda a um casal cujo filho está em estado terminal (é impossível não reparar nos sapatos que traz: aderentes, como os da "hospedeira" que fica de pernas para o ar em "2001", enquanto esfrega os pés no chão: "Gosto deste soalho").

David (Haley Joel Osment) é então programado, o sorriso frio desfaz-se, o olhar humaniza-se e o robô diz: "Mamã". Já é filho.

É a vida familiar no cinema de Spielberg, onde a mãe foi sempre figura de destaque, mas é a vida familiar como nunca fora assim antes, nos filmes Spielberg: melodrama em surdina, em tons frios, como se o mundo existisse à distância, velado.

É também a perversidade: o filho do casal vai regressar a casa, e David ainda mal teve tempo de ser filho e vai ser expulso. Ficará sozinho, com um urso de peluche (tem a voz de Hal, o computador de "2001"), até encontrar Gigolo Joe, um cruzamento entre Elvis Presley e Buster Keaton - foram as indicações que Spielberg deu a Jude Law para compor a personagem. Gigolo Joe é um robô feito para dar prazer.

Começa a odisseia de todos os perigos, que leva David - e Gigolo Joe - até às paisagens de Flesh Fair (onde os humanos se divertem numa arena esventrar robôs) e até à ilusão de Rouge City, local de perdição onde David inicia a sua ascensão até chegar ao topo de Manhattan, a cidade praticamente debaixo de água, e onde o menino vai ficar à espera de sua mãe. Via-sacra e ascensão, sim, com superação do corpo (máquina) para ganhar o espírito. A fábula de David tem marcas religiosas. Mas há sinais de um amor para lá das leis, incestuoso. Um amor pela mãe - David persegue-a até ao fim dos tempos - que o realizador nunca tinha filmado assim de forma tão lancinante.

"AI: Artificial Intelligence" é o melhor filme de Steven Spielberg em vários anos, mesmo que não se resista à tentação de perguntar "o que é que é de Spielberg e o que é de Kubrick?" e que não se resista à maior tentação que é responder. E para quem vê nesta história "Kubrick feito à Spielberg", então deve acrescentar-se que para Kubrick o projecto já era "spielberguiano". "AI" ficou com o melhor de ambos e o melhor é ficar por aqui.

Nesta odisseia emocional cheia de dificuldades, cheia de mudanças de tons e de cenários, cheia de marcas de universos aparentemente tão díspares, o filme, tal como o robô, transcende o somatório das várias peças de que é formado e, em vez de ser um boneco desarticulado, encontra o seu espírito. E Spielberg levou para terrenos da obsessão, como nunca antes fizera, o seu universo. O resultado é pessoalíssimo: súmula do seu cinema ou do cinema que fez nos tempos de "ET" e de "Encontros Imediatos do Terceiro Grau", que constituem um baú de bonecos e memórias a que ele regressou.

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