A Magnífica Anderson

Terence Davies escolheu-a por acaso. Estava a ver retratos feitos por um artista da Belle Époque -"rostos com aquele aspecto endinheirado de americano da costa Leste, com caras grandes, angulosas" - e alguém lhe passou uma fotografia de uma actriz, Gillian Anderson.

Davies, cujas referências para "A Casa da Felicidade"/ "House of Mirth" eram mais "Letter from un Unknown Woman", de Max Ophuls, ou "All That Heaven Allows", de Douglas Sirk, nem sabia que raio de coisa era isso, X Files, nem sabia quem ela era; mas Anderson tinha visto os filmes dele.

Gillian Anderson incomoda-se quando a reacção face à sua presença em "A Casa da Felicidade" é de surpresa. Incomoda-se e irrita-se. É nesse preciso momento, diz ela, que começa a amaldiçoar o facto de ter participado na série televisiva X Files. Sim, sabe-se que faz teatro - recentemente, "The Vagina Monologues" -, mas a verdade é que para todos os efeitos ela é Scully, e por isso é preciso pedir desculpas a Gillian Anderson. É uma surpresa a sua presença no filme de Terence Davies, a sua Lily Bart, a sua entrada no universo de Edith Wharton, no filme de época e no espartilho - embora, isso também é fácil de acreditar, ela tenha aceite a proposta de Davies para se libertar dos espartilhos de carreira e provar que podia fazer outras coisas.

Falando em espartilhos, Gillian Anderson, 32 anos, diz que houve uma altura na rodagem de "A Casa da Felicidade" em que sentiu que os seus rins iam explodir. É que é preciso respirar de certa maneira para a voz ser ouvida. A estranheza de a ver por aqui, como se fosse uma "outsider", se calhar até o próprio desconforto do guarda-roupa, como uma tortura em progressão, trabalham a impressão notável que causa a sua Lily Bart. Há voracidade no rosto dela (a boca, o sorriso de Anderson...), mas essa energia nunca se concretiza e a personagem, incapaz de resolver o obsessivo auto-centramento, fica enredada numa espécie de paralisia, incapaz de decidir, de escolher, entre o casamento por conveniência e o casamento por amor. Há algo de auto-fágico nessa voracidade. Lily Bart só pode ser expulsa, ou então agarrar-se à sua energia no mergulho para uma vertiginosa queda.

Há a estranha relação da personagem com a luz. Quando a vemos, no primeiro plano do filme, ela parece materializar-se a partir do fumo de um comboio parado na estação. Começa logo a evidenciar-se a dificuldade de existência da personagem. E será sempre assim ao longo de "A Casa da Felicidade". Ela preferirá sempre a ambígua protecção da escuridão, como se receasse queimar-se pela exposição à luz.

Aconteceu por acaso, mas por um filme, por este filme, Gillian Anderson encontrou um cineasta que a rodeou da parafernália do sacrifício (nos filmes de Terence Davies é sempre esse o olhar sobre as mulheres), que a devorou. No ecrã ficaram para sempre as marcas da sangria.

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