Melodrama na Fábrica

Um pai, um filho, uma fábrica e a vergonha de classe. É a primeira longa-metragem de Laurent Cantet, que recebeu um César para a melhor primeira-obra do cinema francês.

Frank Verdeau não repara no cartaz colado na porta: "Desconfiem de um mecanismo desconhecido". É um conselho de segurança aos operários da fábrica onde Frank acabou de entrar, chegado de Paris para concluir com um estágio os seus estudos comerciais. E é um aviso em que Frank não repara.

Mesmo que tivesse reparado, o jovem está demasiado entusiasmado com as novas funções no departamento de Recursos Humanos - a fábrica vive uma situação de tensão laboral entre sindicatos e patronato, e Frank quer provar que as coisas podem ser de outra maneira. Tem um plano, e a direcção da empresa também tem um plano para ele. Chamem-lhe idealista e ingénuo?

Talvez. Mas essa cidade da província onde Frank acabou de chegar é a cidade onde ele nasceu, é a cidade onde moram os pais e a irmã. E a fábrica que aceitou recebê-lo para o estágio é o local de trabalho do pai, operário, e o local de trabalho da irmã - aquela que ficou na fábrica, para Frank poder ir estudar para Paris?

Portanto, é natural que Frank queira provar algumas coisas - a si próprio e aos outros. E, se calhar, que queira esquecer outras. "Desconfiem de um mecanismo desconhecido", avisa o cartaz. Refere-se à fábrica, território que Frank não conhece, com a sua hierarquia, segredos, mentiras e "complots" em que o "ingénuo" vai, inevitavelmente, cair. Mas não se referirá também a Frank, que, afinal, também é um "mecanismo desconhecido" para si mesmo? Começamos sempre por vê-lo como uma silhueta de contornos mal definidos, a passar sempre do lado de lá de vidros foscos...

Sirk e Fassbinder. Pode parecer um policial, mas não é. Embora haja "suspense" - Laurent Cantet, o realizador, que com "Recursos Humanos" se estreia na longa-metragem, filma um sistema de portas que se abrem e portas que se fecham, segredos que se murmuram para além delas, janelas que se descem para excluir quem está a ver.

Não é também um filme de "descoberta pessoal", embora se possa dizer de Frank que ele anda à procura de si mesmo - o primeiro sinal da sua perda é ele já não reconhecer o quarto de infância, porque já não é o mesmo desde que se mudou para Paris.

Não é, também, um documento-programa sobre a luta de classes, embora Frank, ao ter ido para a grande cidade, tenha corrido atrás de uma ambição e tenha eclipsado as marcas da sua condição social. Aliás, por isso mesmo, ao chegar de Paris, ele encontra nos outros um olhar de reprovação. E também se nota em Frank um olhar especial: é esquivo, fugidio, quando está com os patrões e eles tratam com condescência o pai. Frank tem vergonha? Tem vergonha por sentir vergonha. Não suporta o olhar orgulhoso do pai porque o filho venceu na vida. Esse olhar significa que lhe foi passada a ele, Frank, a vergonha da sua classe. A que classe pertenço, pergunta ele?, e se a pergunta é silenciosa é também um eco lancinante que se propaga ao longo do filme vibrante que é "Recursos Humanos". Que se não pertence a nenhum dos géneros atrás descritos, pertence a todos eles em conjunto. É um melodrama.

Laurent Cantet faz, à sua maneira, aquilo que, à maneira deles, fizeram (por mais que pareça delirante evocá-los aqui) Douglas Sirk ou Rainer Werner Fassbinder: filma o lugar social como fantasma da identidade pessoal e como território, sempre assombrado, do exercício do poder - logo, lugar por eleição da eclosão do melodrama.

O profissional e os amadores. À sua maneira, claro... Laurent Cantet, que até "Recursos Humanos" tinha feito apenas curtas-metragens, escreveu o seu argumento juntamente com os "actores" do filme - que não são actores, são "pessoas normais", algumas delas com funções na vida iguais às que desempenham na ficção (por exemplo, a delegada sindical é mesmo uma delegada sindical, no desemprego).

Durante meses, realizador e "actores" improvisaram, os diálogos de partida foram reescritos, e só então, à beira da rodagem, é que chegou o actor profissional - Jalil Lespert, o filho.

Esse embate entre o "profissional" e os "amadores" - ele é o que vem de fora; eles são os que estão dentro - não é ilidido através de uma "homogeneização" de registos. A mistura entre o ficcional e do documental é até uma forma de Cantet reforçar as potencialidades melodramáticas do seu filme. É isso que está na base da púdica, mas implacável, coreografia de olhares e gestos entre as personagens, como se se tratasse de um processo de descoberta, manobras de aproximação e recuo, emoções caladas ou vividas à distância que subitamente explodem num espaço codificado, sinalizado por barreiras que pretendem ser intransponíveis.

É nesse confronto de (auto)descoberta (com contornos mitológicos: afinal, esta é a história de um filho que "mata" o pai), que a tipificação social e humana dá lugar a algo de mais complexo - veja-se como muda, aos nossos olhos, a personagem da sindicalista - e de indefinível... ou que só poderemos definir recorrendo ao título do filme, "recursos humanos", como se fosse programa estético e ético. Porque foi servindo-se deles, e celebrando essa variedade que são os recursos daquilo que é humano, que Laurent Cantet realizou aquele que será o mais comovente filme em exibição nas salas portuguesas.

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