Seis Dias, Sete Noites

Alice e Martin" é o regresso, que não podia ser mais aguardado, de André Téchiné a Juliette Binoche, depois de o cineasta, em 1985, se ter decidido por uma actriz quase desconhecida para "Encontro"/"Rendez-Vous", contra as opiniões dos produtores, e a ter atirado para o estrelato. Entretanto, muita coisa se passou na carreira de Binoche e na obra de Téchiné. Começando pela primeira: a presença neurótica, "suja" e letal de "Rendez-Vous" deu lugar (via Léos Carax, Kieslowski, anúncios de perfume e "O Paciente Inglês") a uma estrela etérea, quase muda ("Azul", por exemplo), e Téchiné terá querido reapropriar-se da sua criatura para, disse ele, inverter esse olhar (uma espécie de interioridade que se tinha "esteticizado") e dar movimento e vida ao ícone aprisionado. O desejo terá sido mútuo, e depois de um projecto para já adiado - será o regresso ao romanesco puro e duro, na linha de "As Irmãs Brontë" (1979), que foi um filme mal-amado de Téchiné -, o cineasta estendeu uma personagem que só aparecia na segunda parte de um projecto sobre o qual trabalhava, o futuro filme "Alice e Martin", para voltar a estabelecer os laços com a actriz. Provavelmente, houve qualquer coisa de pouco urgente nessa extensão. Alice passou a ser o elo de ligação entre os traumas que estão no passado de uma personagem, Martin (o estreante Alexis Loret), e o seu futuro. É violinista, para sobreviver aceita encomendas para tocar tango em espectáculos (num diálogo razoavelmente óbvio ela diz que o tango abre as feridas), e é também, e de forma igualmente óbvia, uma espécie de psicóloga que vai trabalhando sobre Martin. Melhor: pelas artes da música, é uma encantadora na terra, presença que assume as suas flutuações nas inconstâncias do presente (Téchiné vê em Binoche alguém "com os pés na terra e a cabeça nas estrelas") e que vai libertar Martin das fixações no passado. Não deixa de ser irónico, e involuntariamente cruel, que nas entrevistas de promoção do filme Téchiné se queixasse que não se falava o suficiente da personagem de Alice. Sem o querer, aludia a um dos falhanços do filme. É que não há nada a perguntar sobre Alice - nem sobre a personagem de Martin. O movimento dela é uma espécie de batuta de maestro a desenrolar artificialmente uma série de movimentos. E Téchiné não se reapropriou de nada nem inverteu nada. Até neutralizou. E, como às vezes acontece em alguns filmes, o mais importante está ao lado das personagens principais. Por exemplo, em "Alice e Martin", Benjamin (fabuloso Mathieu Amalric), irmão de Martin, que, esse sim, recorda, na forma como choca com as imagens e deixa nelas traços misteriosos, a Binoche de "Rendez-Vous" - aliás, como Binoche nesse filme, em "Alice e Martin" Benjamin também é aspirante a actor. É uma personagem que Téchiné perde, e é um filme que Téchiné deixa escapar. Depois do momento de graça que foi "Juncos Silvestres" (1994), o realizador disse que quis com a obra seguinte, "Os Ladrões" (1996), ancorar a sua pulsão romanesca num trabalho mais meticuloso de observação do real. Ora, tal como acontecia em "Os Ladrões", nesta 13ª longa-metragem do cineasta os sinais de real são tão artificiosos (às vezes é mesmo só pôr as personagens a explicar como se anda de metro em Paris) como um movimento de câmara. Pior do que isso: parece que nem Téchiné se convence deles, como se torna evidente também no insonso "realismo" com que trata a personagem de Carmen Maura (actriz para voos excessivos, que transporta a marca de Almodovar, queiramos ou não). Quanto ao romanesco, é baralhar e voltar a dar. Ficaram os tiques, a forte sensação de falsidade, a forma aleatória de colocar os "flash-backs" - não escondem que a narrativa de "Alice e Martin" é uma espécie de cartilha psicanalista sobre "a morte do pai" -, a ilusão de movimento e as rupturas bruscas para inscrever a ideia de variações musicais a materializarem-se na partitura/película (a partir de certa altura as sequências terminam sempre num crescendo que é cortado abruptamente, para começar de novo), ou até os forçados resquícios de fantástico, registo que assombrou os primeiros filmes de Téchiné. Uma das sequências-chave do filme - Alice anuncia que está grávida de um filho de Martin; Martin afunda-se na depressão, já que não pode assumir-se como pai enquanto não se assumir como filho (ou seja, como autor da morte do seu pai) - passa-se entre os rendilhados do Alhambra, em Espanha. Téchiné escolheu esse cenário como "habitat mágico", lugar para a erupção, e depois resolução, da ferida. A sequência é de um folclorismo envergonhado e resume o que têm sido os últimos gestos cinematográficos de Téchiné: forçar personagens, histórias e cenários nos arabescos que lhe sobraram como automatismos.

Sugerir correcção
Comentar