Os Anjos de Charlie

As Três da Vida Alada

Sim, o sucesso da série "Os Anjos de Charlie", nos anos 70, pode ser justificado por razões sociológicas - homens de fora, "womens lib" em movimento, mulheres ao poder na ficção, começando na TV que era o campo menos minado pelas resistências. Cativou o "ar do tempo" - se é que os fenómenos podem ser assim tão liminarmente explicados -, tornou-se série de culto. Mas agora? Agora nada.

"Os Anjos de Charlie", o filme de McG, está desamparado. E absolutamente consciente de que não há nada ali que possa ser justificado, a não ser o puro gozo das meninas, Drew Barrymore (que também foi a produtora executiva), Cameron Diaz e Lucy Liu.

O que é que isso faz do filme? Depende da perspectiva: um dos "turkeys" do ano ou uma paródia esfuziante sempre à beira de se auto-destruir, de perder o gás, como acontece às garrafas de champagne quando passa algum tempo depois do estampido da rolha.

Começando pelo princípio, "Os Anjos de Charlie", filme, acontece por uma razão óbvia: a capitalização do património televisivo americano, que tanto dinheiro tem rendido nas salas quando se transforma em filmes para salas de cinema - foi assim com "O Fugitivo" e com "Missão Impossível". Na origem do projecto, aliás, está Leonard Goldberg, que foi o produtor da série nos anos 70. Mas como alguém diz no início do filme (qualquer coisa como: "Mais um filme que adapta uma série de televisão, é melhor abandonarmos a sala!"), isto não é bem a mesma coisa. "O Fugitivo" e "Missão Impossível" tinham a pretensão de "actualizar" referências - no fundo, isso conduzia a que anulassem a matriz televisiva, deixando só alguns traços de reconhecimento, nas personagens ou no tema da banda sonora que o espectador, afinal, até conseguia trautear, sem necessidade de grandes manobras junto da sua memória. "Os Anjos de Charlie" não faz o mínimo esforço para isso, deixa-nos sem referências. Onde é que está um "plano de cinema"? Não existe, porque nada se fixa. Só há paralíticos, "freezes" em catadupa, sequências de movimento interrompido para imortalizar no poster o cabelo louro de Cameron Diaz com o azul de mar em fundo (ainda por cima, o mar é obviamente uma transparência).

Onde é que está a "história"? Na primeira parte, ela não se consegue impor, porque ninguém tem nada para contar, por mais que o ecrã se divida em acções paralelas. Sim, elas disfarçam-se, são James Bond de saias - mas não usam armas, preferem as artes marciais em versão "Matrix", o que é mais "limpo" e não provoca sangue -, correm ofegantes pelo mundo, disfarçadas de tirolesas ou gueixas, ou fazendo a dança do ventre, só para tirar uma fotografia, coisa de nada. São bonitas e são excepcionais e trabalham para um misterioso e invisível Charlie. E são incansáveis - nós é que nos cansamos com a agitação. E tudo é risível e ninguém esconde a inutilidade do esforço.

Puro gozo. Não é sequela, não é actualização, é puro gozo depois do mito - e com o mito -, iconografia em movimento que cria a ilusão da entrada num túnel de tempo, o da série televisiva. As imagens não são entidades autónomas, sucedem-se como separadores, é uma cortina de fumo para criar a aparência de que do lado de lá há alguma coisa a passar-se.

Se as três - Lucy, a oriental perversa, Drew, a durona com coração mole, Cameron a estouvada - podem ser as várias faces de uma mulher, então essa mulher só pode ser uma, Diaz. Ao contrário da série televisiva - é essa a diferença, se calhar o toque do ano 2000 - estes anjos já não têm nada a provar, sobra-lhes espaço para o êxtase da feminilidade, e quem, no cinema actual, se tem divertido sem complexos com a sua profissão (e com a sua imagem, que tanto aponta para a bomba sexual como para a maria-rapaz traquinas) tem sido mesmo Cameron Diaz. De uma rodagem que deu origem a rumores contraditórios, tendo-se falando mesmo de problemas pessoais entre o "cast" e atrasos de produção que prejudicaram o clima de trabalho, "Os Anjos de Charlie" de McG revela afinal uma surpreendente felicidade. Diaz transpira narcisismo saudável por todos os lados, como naquela sequência de dança em que todos - inclusive a própria - se espantam perante as proezas do seu traseiro.

McG, o realizador, é obviamente uma incógnita. Que figura faz, ou que figura fará, no cinema não se sabe. Será um "cineasta"? É duvidoso. As notas biográficas dizem-nos que esta é a primeira longa-metragem de um realizador de videoclips e spots de publicidade (mais um...). Mas se compararmos com Spike Jonze ("Queres Ser John Malkovich?") ou com Tarsem Singh ("A Cela"), poderíamos dizer que McG faz em "Os Anjos de Charlie" aquilo que o primeiro muito decididamente não quis fazer no seu filme e consegue fazer aquilo que o segundo muito claramente não soube fazer no seu filme. Ou seja, mantém-se como manipulador de ambientes, atmosferas e matérias sem impor a necessidade de uma narrativa cinematográfica. Não se mostra, portanto, um cineasta, como Jonze; mas não é um falsificador como Singh. Está numa terra de ninguém, como o filme.

É isto um filme? Se calhar não, mas essa é a sua graça e o que o distingue da produção americana corrente. Porque o problema, mesmo, é quando "Os Anjos de Charlie" quer ser um filme (na segunda parte), fingindo acreditar no que está a contar, e dando ao espectador a receita de "meia bola e força" habitual. Até aí, no entanto, é gasoso.

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