O filme de culto de Spike Jonze

"Queres Ser John Malkovich?" foi o filme de culto de 1999. É uma comédia negra, surrealista e desesperadamente humana, em que um grupo de infelizes encontra uma porta de entrada na cabeça de John Malkovich. Durante 15 minutos têm a experiência de ser outras pessoas. E pelos vistos a infelicidade já estava no macaco.

É o sétimo andar e meio que dá acesso à cabeça de John Malkovich. Não o sétimo nem o oitavo, é o 7 e 1/2. A notícia espalha-se, e a fila dos que querem experimentar outra identidade - têm direito a 15 minutos - enche-se de rostos deprimidos. Dir-se-ia a "sopa dos pobres". É um retrato de depressão, porque os corpos têm de se dobrar pelos joelhos e nem mesmo assim as cabeças podem estar levantadas - é que o tecto é baixo.Quando John Malkovich descobre o "complot" dos seus parasitas e dá de caras, aterrorizado, com uma fila de pessoas amontoadas num corredor de um edifício de Manhattan, a sequência é de pesadelo, o horror é "kafkiano". Além do mais, John Malkovich, ele próprio, não é bem ele próprio. Sim, é ele. Começamos por estar seguros daquilo que vemos - afinal, conhecêmo-lo dos filmes.

Mas mais ninguém em "Queres ser John Malkovich?" acerta com os filmes em que ele entrou. E há sempre alguém que nunca ouviu falar de uma estrela de cinema chamada John Horatio Malkovich. O problema, se calhar, é o "Horatio": não pertence ao nome próprio do actor, é invenção de argumentista.Ou seja, ele é e também não é. E o piso, o tal que está a meio entre o sétimo e o oitavo, é um limbo. Resultado: o espectador, e não apenas Malkovich, começa a sentir que alguém está a querer ocupar a sua cabeça.Desesperadamente humano. Dentro do filme, a culpa é de Craig (John Cusack) e de Lotte Schwartz (Cameron Diaz). Abriram a "caixa de Pandora": descobriram uma porta que dá acesso a John Malkovich e são dos primeiros a experimentar as suas possibilidades. Ele manipula marionetas e está zangado com o mundo porque ninguém lhe dá o valor que ele merece; ela tem o seu próprio jardim zoológico em casa. Craig e Lotte são um casal que se esqueceu de si, e o portal para Malkovich é a hipótese de vingar os falhanços. No caso de Lotte, que também perdeu algures a sua feminilidade, isso vai ao ponto de, através de Malkovich, se sentir o homem que quer ser e possuir outra mulher (Catherine Keener, em pérfida "alumeuse"). Portanto, frustração artística, falhanço humano.

Todos querem ser o que não conseguiram ser, e ninguém vai deixar de infernizar a vida alheia.A culpa última, essa, é do realizador, Spike Jonze, que contraria todas as possibilidades de "fantástico" que está no argumento de Charlie Kaufman (este diz que não precisou de fumar nada para o escrever, o seu cérebro é que se encarregou de fabricar todas as substâncias duvidosas que foram necessárias). Ao manter-se nos limites do "realismo", como se ele fosse uma incontornável casualidade, Jonze abre as portas a todos os deslizes, e não podemos deixar de escorregar neles, ficando sem referências de espaço e sem identificação possível com as personagens - não é que elas não existam; mas são vacilantes, estão sempre a escapar.O espaço fica aberto à virtualidade, e uma estranheza monstruosa agiganta-se no interior. É a nossa cabeça a responsável pela distorção? Quem é que está a querer colonizá-la na sala de cinema?

Sim, "Queres Ser John Malkovich?" já foi considerado um filme da era da Internet, e Spike Jonze, homem de vários instrumentos, tem o perfil à medida do "artista do século XXI" - foi nessa base que se construiu o "hype" desta comédia, filme de culto de 1999 que valeu a Jonze chegar e vencer, com uma nomeação para o Òscar do melhor realizador.Dito assim, é fácil imaginar "piscadelas de olho", artifício a rodos, enfim, um labirinto saturado de produção, até porque Jonze vem do videoclip, mundo de possibilidades que tem ao seu dispor o "state of the art" da técnica. Ora, em vez disso, "Queres ser

John Malkovich?" é um filme anacronicamente artesanal: humano, desesperadamente humano. É uma fábula negra, negríssima, feita de personagens dilaceradas, cindidas na sua personalidade, ausentes da sua sexualidade. Como se o surrealismo à Buñuel não se conseguisse despegar da agonia à Bergman. A culpa é do macaco. À superfície, o tom é o de comédia absurda, que podia apenas ser "espertalhona". Ao fundo - não tão ao fundo; a angústia cola-se-nos à pele - desfila a desgraçada comédia da condição humana. Tão desgraçada como se estivesse inscrita nos princípios darwinianos de evolução da espécie. Atenção à personagem de Cameron Diaz e aos seus animais; atenção a um discreto chimpanzé. Como se verá, a culpa também está inscrita no macaco, e o filme faz da biologia da evolução um infernal mote de comédia negra. Olhando bem para as personagens: elas parecem ter sobrevivido a uma catástrofe (o impressionante "low profile" da habitualmente exuberante Cameron concentra em si o abandono emocional de todos). Esse desastre é a sua própria e solitária humanidade. Não há como escapar.

Para regressar a Spike Jonze: atravessa o seu filme (como atravessa os seus videoclips), apesar dos malabarismos de argumento e dos prodígios da técnica (isto, nos vídeos), um apego, irónico e inevitavelmente trágico, ao que no homem permanece depois de todas as euforias, depois de todos os "pós qualquer coisa..." (do estilo, "depois da Internet"). Ou seja, a solidão. Para simplificar: é esse o optimismo de um filme que termina com um "happy end" que se recebe como um pontapé de humilhação. Para voltar a John Malkovich: é bom ver um actor que nos últimos tempos não tem feito muito para disfarçar a sua preguiça e o enfado profissionais deixar-se, assim, assaltar pelo desconforto.

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