Missão a Marte

Planetário Brian de Palma faz um filme de ficção científica como se fosse um "show" de planetário. É uma espécie de regresso às origens do género. Sem a parafernália dos efeitos especiais e dos "gadgets", "Missão a Marte" parece ter sido feito com a ilusão de optimismo e idealismo dos anos 50. "Missão a Marte" é o primeiro filme de ficção científia de Brian de Palma. "Foi a possibilidade de pôr em suspensão a minha série de filmes cínicos, sobre a mentira, a corrupção e a traição, para me interessar pelo combate dos homens com os elementos. É como subir o Evereste: temos as personagens e um espaço desconhecido que elas tentam conquistar", disse o realizador numa entrevista. Suspenso, também, ficou o tempo. Todos os colegas de geração de DePalma, a constelação à volta dos chamados "movie brats" - de George Lucas a Steven Spielberg, passando por Robert Zemeckis - foram deixando, nas duas últimas décadas, as suas marcas na ficção científica, impondo algumas das coordenadas que o género viria a ter, mas Brian de Palma parece que se esqueceu delas e voltou atrás: como se a "space opera" ("A Guerra das Estrelas"), por exemplo, nunca tivesse acontecido, nem o "fétiche" pelos efeitos especiais ou pelo "gadget". Regresso às origens, portanto, e as origens, para o cineasta, foram os optimistas anos 50, quando era um miúdo nos "shows" de planetário e quando construía foguetes (a sua relação com a ficção científica, filmes ou livros, disse ele, partia sempre de uma base realista, "pelo interesse pela utilização realista das máquinas") ou quando sonhava com o mundo idealizado da NASA e com a pureza espiritual dos astronautas. Como ele disse, "quando ir para o espaço era a great ideal thing to do". São assim - idealistas - as personagens de "Missão a Marte". Em 2020, a equipa da missão Mars One é varrida por uma tempestade de areias e rochas no Planeta Vermelho. O único sobrevivente (Don Cheadle) tem ainda tempo de enviar um SOS, antes de as comunicações se calarem para sempre e o silêncio se abater no cosmos. A NASA envia então uma equipa de salvamento, em que estão a bordo os astronautas Gary Sinise, Tim Robbins e a sua mulher, Connie Nielsen. Personagens sem "acessórios", de corpo inteiramente dedicado a uma missão (como nos filmes de Howard Hawks, assume o realizador), com uma secura directamente proporcional à tenacidade e à mística que brilha nos seus olhos - Brian de Palma quis que os olhos dos actores tivessem a intensidade do olhar dos astronautas, aqueles que já tiveram diante dos olhos coisas de que os outros mortais nunca se abeiraram, aqueles que parece que "viram Deus". "Missão a Marte" é um filme "realista", diz Brian de Palma. E explica porquê: foi a colaboração próxima com cientistas e especialistas da NASA que permitiu imaginar os veículos, os computadores a bordo e a forma de coordenação motora dos astronautas; os cenários e as tempestades de areia foram criados a partir de fotografias de Marte; mesmo o "Rosto" de Marte que a equipa encontra, é uma fantasia a partir de uma imagem do Planeta Vermelho que mostrou um relevo e deu origem a delírios, "vendo-se" aí os contornos de um rosto. "Realista", ainda, porque tudo o que não sabemos sobre Marte mas gostaríamos de imaginar - a existência de vida no planeta - é tratado por De Palma exactamente assim, ou seja, de forma irrealista. Esta missão a Marte encontra marcianos no planeta. Como é que o realizador os mostra? Não como ETs humanizados, susceptíveis de identificação, mas como a imagem final de um espectáculo de planetário criado para as personagens, antes mesmo de ser um espectáculo criado para suspender ou adormecer a dúvida do espectador. "Realista", portanto, mas isso, hoje, quando os filmes conseguem impor todas as realidades, é forçosamente uma manifestação "inocente", e esse anacronismo toma proporções quase surrealistas e oníricas. Brian de Palma nunca foi um cineasta "virginal", é verdade. Mas "Missão a Marte" é o mais próximo que ele conseguiu chegar desse estado - foi preciso pôr os pés num outro planeta, brincou o cineasta. Brian de Palma é um cineasta céptico, já que as imagens, para ele, são hipótese de ilusão, de logro e de mentira. "Missão a Marte" começa logo com um efeito de "trompe loeil", com um plano "falso" da descolagem de um foguetão que, a câmara revela com um "travelling" para trás, é, afinal, uma brincadeira de miúdos, e acaba com a figuração de vida no planeta mostrada com uma distância quase "brechtiana". Brian de Palma é, também, um devorador, os seus filmes são sempre sobre outros filmes (aqui encontram-se vestígios de "2001-Odisseia no Espaço", sem a frieza e o simbolismo, ou de "Forbidden Planet"), e quase sempre exercícios cerebrais sobre a ilusão (esse lado de máquina do pensamento em acção aproxima-o de Kubrick). Mas em "Missão a Marte" a ideia, sobre a qual o cineasta se vem exercitando na sua obra, de que uma imagem esconde sempre outra imagem serve uma púdica postura de entrega. Para deixar os fios de encenação à mostra, e tocar uma réstea de humano. Isso no cinema de hoje dá origem a reacções sem piedade. A crítica americana, por exemplo, considerou "Missão a Marte" "naif" e "ridículo". E se em vez disso, o considerássemos encantatório?
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