Forças da Natureza

"Ele não transpira. Ele não tem borbulhas. Ele cheira a leite. A base da sua atracção é a limpeza e a respeitabilidade ? este rapaz é puro." Ben Affleck? Não, Rock Hudson, tal como era visto nos anos 50 pela revista "Look", que tentava perceber o sucesso do galã. Nesse número, um anónimo dizia também que Hudson era todo artifício e falsidade, mas percebia que era essa construção o pacto que os fãs tinham assinado. Isto quer dizer o seguinte: na década dos perturbados Brando, Clift e Dean, a falsidade de Hudson dava uma versão segura e pacífica, mesmo que construída, da masculinidade. Não agredia. É de Hudson que nos lembramos ao ver o pacífico Ben Affleck em "Forças da Natureza". Dele, e de um modelo celebrado pelo cinema americano dos anos 50, o "The Man in the Gray Flannel Suit", título de um filme de 1956, com Gregory Peck. Que construção de homem era esta? Era o homem que tinha voltado a casa, depois da II Guerra Mundial. Era o homem que, após ser obrigado a exorcizar a violência e a turbulência, como sinais da sua masculinidade (não por acaso, os anos 40 foi o tempo dos filmes de guerra e do "film noir"), foi domesticado no espaço familiar (as comédias românticas da década de 50), mística com que a América se glorificou no pós-guerra. Era o homem que se casou para apaziguar a turbulência. Passou a ser dócil junto às máquinas caseiras, activo no espaço doméstico ? até aí, domínio do feminino ? nos anos do "boom" do consumismo americano. Esse homem casou para regular os ímpetos da sexualidade. Cedeu à ideologia do casamento, castrou-se. Sem neuroses e sem rebelião, às vezes mesmo com uma suavidade amorfa, apesar de alguns terem tentado apanhar em falso esse modelo, como se quisessem dinamitar a falsidade dessa construção. Pense-se, por exemplo, nos cartazes dos filmes de Hitchcock, "Vertigo" e "Intriga Internacional", e na forma como James Stewart e Cary Grant, nos seus impecáveis fatos, são vistos em perda, a cair. Este modelo existe de novo, e Ben Affleck é a última das encarnações. Chama-se Ben, vai casar-se e prepara-se para apanhar o avião, em Nova Iorque, para Savannah, na Georgia, onde o espera a noiva. É aí que conhece Sarah (Sandra Bullock), e então o composto Ben, que tinha conseguido não pestanejar na sua despedida de solteiro, onde os amigos lhe ofereceram uma "stripper", vai ficar debaixo das tempestades das "forças da natureza". O avião fica em terra, o "road movie" forçado a dois, por carro, é igualmente desastroso, pleno de mal-entendidos, e, para chegar à boda, sobre a qual vai desaguar um temporal, Ben, que entretanto teve de mudar de roupa e envergar trajes mais informais, vai ser obrigado a tirar tudo, e a protagonizar um "strip" num bar "gay". Pouco explícito, aliás, porque a comédia romântica, hoje, é bem menos subversiva do que a de há décadas atrás. É a impetuosa Sarah, como se percebeu, que deverá soltar a natureza de Ben. Ora, eis uma actriz, Bullock, que até aqui tem sido o correspondente feminino desta serenidade no limite do amorfo, a "girl next door", a tentar uma mudança de imagem: maquilhagem carregada, sinais psicóticos. Mas nem Bullock consegue ser a Melanie Griffith de "Selvagem e Perigosa", de Jonathan Demme (o que faz com que o centro de "Forças da Natureza" seja a passividade de Affleck), nem Bronwen Hughes, a realizadora, foi capaz de cometer mais do que pequenas patifarias à roupa do macho. Ben casa-se, afinal, e a intrusa fica à porta. O temporal desaba, e Ben, de novo vestido com o seu fato cinzento, dá entrada no espaço da sua emasculação. Em Savannah, noivo e noiva juram fidelidade eterna. Para eles, a tempestade está lá fora.

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