Rosetta

Ela quer ser "normal". Quer encontrar um emprego, chegar ao centro, existir. Rosetta não olha para ninguém. Rosetta devora tudo o que está à volta dela. Não há espaço para os outros, nem para as razões dos outros. É um monstro. Não a podemos julgar e não podemos ser cúmplices. Ficamos sozinhos com este filme sublime dos irmãos Dardenne.

Quando uma jovem proletária chamada Rosetta irrompeu nos ecrãs do Festival de Cannes, correndo e escancarando as portas, virando as costas aos espectadores, nem sequer olhando para eles - porque o que ela queria era procurar um espaço para si mesma -, decorriam os últimos instantes de um certame que, todos tinham a certeza, iria premiar "Tudo sobre a Minha Mãe", de Pedro Almodóvar. Por isso, quando o júri presidido por David Cronenberg atribui a Palma de Ouro a "Rosetta", o filme dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne que passou nas horas finais do festival, houve, entre o público e a crítica, quem sentisse que tinha levado com as portas na cara.

Os belgas, esses, rejubilavam. Tinham encontrado em Rosetta a sua guerreira, Santa Rosetta, tão obstinada como Joana dArc, e ela vingaria o seu complexo de inferioridade em relação aos franceses. A Palma de Ouro a França não poderia tirar-lhes.

Para os outros, ficou como um palmarés "marginal", e a polémica alimentou a imprensa semanas a fio, mesmo depois do termo do festival, dando a medida da devastação que "Rosetta" tinha deixado à sua passagem. Criou-se um cisma entre o público e o festival, foi dito; e - a principal preocupação veio à tona, a hipocrisia, enfim, revelou-se - estava-se a ignorar os filmes americanos e, dessa forma, Hollywood não voltaria a fornecer a Cannes as estrelas e o "glamour". Ainda por cima, para além da Palma de Ouro o júri distinguia como melhor actriz Emilie Dequenne, uma jovem de 18 anos que nem sequer era actriz. E "Rosetta" nem era um "filme", mais parecia um "documentário militante".

Retrospectivamente, a decisão do júri até pode ser vista com um gesto fundador, já que hoje se fala muito da redescoberta dos corpos proletários pelo cinema (não foi só "Rosetta", foi também o Grande Prémio do Júri ao igualmente polémico "LHumanité", do francês Bruno Dumont, e é agora "Ressources Humaines", de Laurent Cantet, um dos filmes de mais referência na imprensa especializada em França). Mas isso não servirá de caução. A decisão vale por si como afirmação voluntariosa de uma escolha. Decisão "marginal"? Não. "Radical"? Sim. E voluntariosa, livre e provocadora, uma decisão de gosto, a sua única caução, que correrá o risco de alienar outros gostos mas que quer, sobretudo, partilhar e trazer para o centro o objecto a que se ficou "agarrado". É disso que se trata. É isso que faz correr Rosetta, a personagem deste selvagem e sublime filme dos Dardenne.

De onde vem e para onde vai?

Quem é ela? Não sabemos de onde vem nem para onde vai, já a apanhamos em movimento, a correr, a derrubar todos os obstáculos. Sabemos apenas que ela quer ser "normal". Vive numa caravana, num baldio chamado "Grand Canyon", nos arredores de uma cidade belga, e quer encontrar um emprego. (Luc e Jean-Pierre Dardenne começaram com o desejo de fazer um filme com uma mulher, tinham apenas um nome e pensaram na personagem de K de "O Castelo", de Kafka, que é constantemente impedida de aceder ao castelo, de entrar na aldeia e que por isso se questiona se existe). Rosetta quer ser como os outros, quer sair das margens para chegar ao centro. Quer existir. "Quero trabalho, quero uma vida normal."

Rosetta não nos olha, Rosetta não olha para ninguém. Rosetta devora tudo o que está à volta dela, cenário incluído. Não há espaço para os outros, não há espaço para as razões dos outros (como ainda as havia em "A Promessa", de 1996, o anterior filme dos cineastas, que também tinha no centro um adolescente na corrida voluntariosa da sua normalidade, o emprego). Nunca percebemos qual é o espaço que circunda Rosetta, não há contracampo possível, a câmara dos Dardenne está colada a ela, não se sabendo bem se é da sua energia que o cinema e a câmara de filmar se alimenta, ou se é ela que se transforma em cinema. Talvez seja a segunda hipótese, e os outros, definitivamente, não existem.

É forçoso convir que estes são postulados bizarros para uma obra que tem sido etiquetada de "cinema social". Luc, licenciado em Filosofia, 45 anos, e Jean-Pierre Dardenne, comediante de formação, 48 anos, admitem que os seus 20 anos de trabalho nas áreas do documentarismo social e político criaram um mal-entendido em relação à sua obra. Isso já era visível num filme de ficção como "A Promessa" (o primeiro, dizem eles, que fizeram exactamente como queriam fazer). Ora, "Rosetta" radicaliza tudo. Basicamente, porque não há uma narrativa exemplar. Não há narrativa, aliás, a não ser Rosetta, que quer existir como personagem - que quer existir. Por aí, pelo seu voluntarismo cego, é um animal, que domina o seu espaço (o bosque, onde tem escondidas as botas para a lama) e os expedientes de sobrevivência. É impressionante, para voltar à ausência de olhar, como parece nada ver (e nós ficamos obrigados, como ela, a perceber as presenças só através do som que as anunciam) e "cheirar" tudo à distância, com o instinto de um réptil. E não há género cinematográfico definido. Se é ela que suga a energia do filme para se construir como ficção, o filme é arrastado, obrigado a tomar a forma, consoante os gestos e as pulsões da personagem, do filme policial, do filme de terror, do filme de guerra - Rosetta está em guerra com o mundo -, ou mesmo, como tem sido observado com algum delírio, do "western" ("Grand Canyon" chama-se o espaço de Rosetta, que é uma personagem sozinha contra a cidade que a não integra).

Monstruosamente humana

Assim, esta tão pouco exemplar Rosetta é tanto uma guerreira como um "serial killer". É uma moralista e uma fascista (a forma como impõe as suas regras, no seu espaço, à mãe alcoólica), e, quando os outros são uma ameaça, uma delatora. Presta-se mesmo a tornar-se assassina. No fundo, é humana. E por aí é fácil perceber o que deslumbrou Cronenberg, o presidente do júri de Cannes. Rosetta como personagem cronenberguiana? O movimento incessante de Rosetta é uma corrida olímpica, febril, de transcendência dos limites, com a mesma carga de utopia das personagens do realizador de "A Mosca". Nela também se fundem o humano e a máquina (os gestos, quando começa a trabalhar, são maquinais, como se pode dizer que a sua obsessão e teimosia não são "humanas"), e nela também irrompe a monstruosidade. As dores no ventre que Rosetta pretende aplacar com o calor de um secador são inexplicáveis, são uma desordem orgânica e quase que ficamos à espera que surja a mutação.

Rosetta corre, e o filme com ela. Por isso não é o filme que a pára, é ela que pára o filme. Quando chegámos a ela, no início, já ela ia a correr. Quando a deixamos, não sabemos o que lhe vai acontecer. Ela leva nas mãos uma botija de gás (suicídio?), é o momento em que se imobiliza, porque alguém chegou para a ajudar. Pára, chora, pela primeira vez parece que reconhece que existe um outro. O momento de contrição, a consciência moral, como ainda os Dardenne filmavam o fim do périplo do adolescente de "A Promessa"? Dificilmente, embora aí sejamos obrigados a olhar para uma dimensão do humano que sentimos que nunca tínhamos visto.

Nunca saberemos se alguém conseguiu parar Rosetta. Continua a ser só ela - "Tu chamas-te Rosetta, eu chamo-me Rosetta. Tu encontraste trabalho, eu encontrei trabalho", como a víramos balbuciar no início, incorporanto tudo nela mesma -, e nós estamos reféns dela, da sua solidão, de uma existência sem caução. Não a podemos julgar e não podemos também ser cúmplices do seu trajecto. Ficamos sozinhos com este novo ser que irrompeu. E a única solidariedade que não se consegue reprimir não é social, nem política, é, fulgurantemente, cinematográfica.

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