Notting Hill

Quando estreou "Quatro Casamentos e um Funeral", muitos embandeiraram em arco com o feito: a pequena indústria inglesa conseguira, com poucos meios, um enorme sucesso no mercado americano, apostando em valores e estrelas tipicamente britânicos, a que se acrescentara a mais-valia de Andie MacDowell. O que resultava, sobretudo, era a quase ingénua mistura de comédia romântica com farsa, adornada por um perfeito golpe melodramático - o funeral - com adequado poema de Auden e um belíssimo "pathos" para o segmento homossexual da narrativa, sem demagogias nem falsas políticas correctas. Agora, a mesma equipa reincide mas, e apesar da forte imagem comum, a de Hugh Grant, repetindo alguns tiques do seu herói despassarado, os dados apontam para outros voos. Se a mesma geografia de um exotismo familiar londrino (uma Londres de absoluto lugar-comum para preferencial consumo além-Atlântico) dá o tom, a parada torna-se mais alta pela inclusão no elenco de uma estrela de primeira grandeza (Julia Roberts), a fazer de estrela de primeira grandeza. Tudo passa pelos reconfortantes clichés: um livreiro distraído e insatisfeito recebe na sua livraria a visita de uma actriz célebre, apaixona-se, apresenta-a aos amigos, é vítima dos "paparazzi" e recupera-a "ao vivo" durante uma conferência de imprensa. Se acrescentarmos a este pacote um bairro da moda, Notting Hill, com todos os matadores, desde o mercado de Portobello Road ao role dos habitantes famosos, teremos a extensão da receita. Acrescente-se-lhe um grupo de amigos sortido, em que se inclui a antiga namorada paralisada por um acidente, o marido desta, que é esforçado, embora mau, cozinheiro, ou o "flatmate" galês, atrevido e disparatado. Deve, porém, dizer-se que a fórmula resulta (prova-o o imenso êxito em todo o mundo anglo-saxónico), primeiro porque as estrelas correspondem ao seu paradigma (Grant faz o seu enésimo tímido enamorado e Roberts reencarna a Cinderela como em "Uma Mulher de Sonho"), segundo porque "Notting Hill" assume a sua qualidade de auto-pastiche. Nada é novo, mas a reciclagem está de tal maneira à vista que evita qualquer ilusão. Mesmo a ligeira inversão de papéis, dando o aparente comando da acção a Julia Roberts, possui o necessário contraponto na sacrossanta história da solidão da fama. Para um público sedento de "déjà vu", baralham-se os conhecidos ingredientes dos contos de fadas, presentificados, e tornam-se a dar, sem nunca pretender dourar a pílula mais que o estritamente necessário. Desde o início que sabemos da inevitabilidade do amor, só temos que o ir digerindo em pequenas doses: primeiro o café entornado, depois o encontro a sós, logo a festa de família, o jardim secreto em dispensável e decorativo picado final, a descoberta do segredo pelos maus da fita (as bruxas más feitas jornalistas), o desfecho feliz com Hugh Grant a enfiar o sapatinho, tornando-se ele próprio Cinderelo (já antes houvera uma referência ambígua aos pés grandes do protagonista...) de uma masculina Gata Borralheira. A fada boa que propicia a felicidade para sempre chama-se câmara (o ecrã ou a televisão), forma apologética dos media como meio e como fim. Neste amor a um cinema auto-referencial se encaixa o mais célebre plano de "Notting Hill", um longo "travelling" que faz escoar o tempo por entre as quatro estações do cenário, conferindo ao real (não nos esqueçamos nunca que o título do filme aponta para uma dimensão toponímica verosímil) a irrealidade indispensável à fantasia de estúdio. Há quem se irrite com esta insistência num cinema previsível, destinado pavlovianamente a fazer o público da aldeia global salivar nos sítios certos. Digamos em abono do produto presente que o processo está tão denunciado que, pelo menos, prima pelo despudor de não querer ser desonesto. E depois, só acredita em cinematográficas histórias da carochinha quem quer...

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