Não é só comida que lhes levam a casa — é também o dia-a-dia

Em Santo António — como um pouco por todo o país — está montada uma rede para acudir a quem não pode ou não deve sair de casa em tempos de pandemia. Vão ao supermercado, à farmácia, à padaria e até comprar tabaco. Relato de uma manhã nesta freguesia para mostrar como é “levar o dia-a-dia à porta de casa”.

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Rui Gaudencio
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Ainda não são 10h e Dulce tem o fogão quase limpo e a cozinha do restaurante praticamente arrumada. Já seguiram as 30 refeições para a Junta de Freguesia de Santo António, em Lisboa, mais 20 para uma empresa. “Lombinho de porco assado no forno. Para amanhã ainda nem sei o que é que vai ser, ainda tenho de pensar.”

A cozinha é a sua “luta”, diz. Não fosse esse vírus que anda por aí, e Dulce Vieira, de 56 anos, ainda tinha muitos almoços para servir na Parreirinha dos Capuchos. Com o estado de emergência decretado, acabou por fechar portas à hora de almoço e manteve só a confecção das refeições, que serão distribuídas a idosos e doentes crónicos da freguesia. 

Do supermercado ao euromilhões. Vanderlei faz tudo para que os mais vulneráveis fiquem em casa

A agitação que nos últimos anos marcou a capital deu lugar a uma estranha acalmia. Mas, perante uma cidade que se fechou em casa, há quem saia da sua, todos os dias, para que outros não o tenham de fazer. Dulce vai-se protegendo e sabe bem a sua missão. “Só peço que não me aconteça nada, para poder continuar aqui a minha luta a ajudar, porque há pessoas a precisar bastante. Isso é que me preocupa. Que uma pessoa possa sempre continuar a trabalhar para que tenham a sua comidinha em casa... Mas pronto, temos de ter esperança. Há-de correr tudo bem...”

As refeições que Dulce preparou já seguiram rua acima, para as instalações do Centro Social Laura Alves. Lá foram postas em sacos, compostos com fruta e pão. A Junta de Santo António apoia, neste momento, cerca de 300 famílias — distribui mais de 200 refeições, entre almoços e jantares, diz o presidente, Vasco Morgado. Perante a pandemia, e com recomendação de contactos mínimos, como se reinventa uma junta para estar mais próxima do que nunca dos seus cidadãos?

“Nós preparamos tudo para que os grupos de risco que não podem vir à rua possam manter o seu quotidiano o mais normal possível, mas dentro de casa. Desde passear o cão até ir às compras, a projectos online para as pessoas estarem entretidas em casa”, diz o autarca. 

Com o surto de covid-19, a maioria dos trabalhadores recebeu ordens para se resguardar em casa. Ficaram os imprescindíveis: as equipas de limpeza urbana e os serviços de acção social. Com ordens para irem rodando de 15 em 15 dias. Com o estado emergência prolongado por mais duas semanas, os pedidos de ajuda vão aumentar, prevê Vasco Morgado. E uma peça muito importante para que toda a engrenagem de apoio funcione é a equipa “brutal”, que “tem dado a cara à luta”. “Isto não é fácil.” 

Alimentos, mas também tabaco e Euromilhões

Vanderlei Badalotti, de 40 anos, é um dos que se mantêm na linha da frente. Trabalha no departamento de acção social há seis anos, dando apoio aos fregueses carenciados. “Mas, neste momento, estou fazendo o que for preciso”, ri-se o brasileiro do Paraná, que está em Portugal há duas décadas. Distribui refeições, vai fazer as compras de supermercado como se das de sua casa se tratasse. 

As duas últimas semanas têm sido “intensas”, diz Vander. Os pedidos de apoio alimentar têm aumentado todos os dias. Rui Guadêncio
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As duas últimas semanas têm sido “intensas”, diz Vander. Os pedidos de apoio alimentar têm aumentado todos os dias. Rui Guadêncio

Uma das soluções — e à semelhança do que aconteceu noutras freguesias pelo país fora — foi criar um serviço de entrega de compras ao domicílio destinado aos grupos de risco (+60 anos e doentes crónicos). A junta faz as compras de farmácia e supermercado e leva-as a casa, de segunda a sexta, das 9h às 16h. 

Luvas e máscaras postas, “Vander”, todos o tratam assim, pega na carrinha. Tem para aviar uma encomenda para um casal na casa dos 80 anos que chegou do Brasil e está em quarentena. Destino: supermercado na Avenida Duque de Ávila. Leva a companhia de Raquel, também da equipa de acção social, que lhe vai dar uma mão nas compras.

As duas últimas semanas têm sido “intensas”, diz. “Acho que não tivemos nenhum dia em que não tenhamos aumentado o apoio alimentar. Assusta um bocado as proporções que isto possa tomar”, vai contando, ao volante. Chegados ao supermercado, tranquilo e silencioso àquela hora da manhã, pega no carrinho e começa a percorrer a lista. Ora, “três quilos de arroz-carolino, duas garrafas de litro de azeite, cinco sacos de brócolos já lavados...”

Normalmente vão em pares ou trios e fazem compras para os vários pedidos que chegam por telefone. Quatro técnicas da junta estão em casa a fazer e a receber chamadas. Todos os dias, são feitas cerca de 250 chamadas a pessoas sinalizadas. Perguntam se está tudo bem, se precisam de alguma coisa, e alertam para possíveis fraudes: Não, a EDP não anda a contar electricidade, nem ninguém anda a fazer testes à covid-19 em casa. Quem recebe as chamadas esclarece informações, encaminha pedidos de documentação e pedidos para entrega de compras em casa. 

Voltando à lista, é preciso ainda pôr no carrinho uma “embalagem de chá de camomila, sabão azul e branco, lixívia, bicarbonato de sódio” — estes últimos quase sempre presentes nas listas de compras que lhes chegam, acompanhados pelo álcool gel, que tem sido difícil de encontrar. Mais “um frango e quatro quilos de batata branca”.

Entretanto, o telefone toca e chega mais uma encomenda. “Estamos a tentar atender aos pedidos no próprio dia.” O serviço é de facto dirigido aos mais velhos e a doentes crónicos, mas não tem fechado a porta a ninguém, diz. 

Há pedidos, cuja lista é mais pequena, outros de dimensão semelhante às “compras do mês”. Já foi comprar tabaco — “que o utente não tem condições de ir à rua buscar e infelizmente precisa” — e até o Euromilhões. “Não é a nossa prioridade”, justifica. Mas lá faz questão de aceder ao pedido para manter os dias, as rotinas de quem pede, o mais normais possível.

Esse, de resto, tem sido o grande desafio, assume Vasco Morgado. “Como é que nós, que queremos que eles saiam de casa e venha ter connosco, de repente lhes dizemos: ‘Fiquem em casa'?” A resposta, que obrigou a vários exercícios de imaginação, resume-se em poucas palavras: “Levando-lhes o dia-a-dia à porta.”

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Maria Manuela, 84 anos, não sai de casa há quase um mês. Rui Guadêncio

“Quero estar cá enquanto puder”

Aviadas as duas encomendas, é altura de as distribuir. Destino: Rua de Camilo Castelo Branco. Maria Manuela espreita à janela para ver quem lhe toca à campainha. “É da junta e temos as suas compras!” Ela lá diz para empurrarem a porta e subirem até ao segundo andar. 

A mulher de 84 anos abre a porta ainda de robe, acompanhada pelo inquieto cão Ruca. Os sacos são deixados à porta. Contacto mínimo e cuidados máximos, sem nunca saber se são suficientes. “Mas a gente tem tentado...”, diz Vander.  

Ela agradece, paga as compras e conta como o vírus lhe abanou com as rotinas. Ia às compras à Duque de Loulé, ia à farmácia. “Agora não posso fazer nada...” Vai passando os dias com os “livros grandes de sopas de letras” e ali se entretém a ver passar as horas, os dias. “Eu ainda não percebi o que é que se está a passar para aí. Já estou em casa quase há um mês e por cá continuo...”

Maria Manuela sabe que tem de ficar em casa e dá-lhe até medo de ir à varanda. “Não sei se é um micróbio ou o que é isso que anda no ar que só veio para chatear a gente.”

As compras são pagas no acto da entrega e a dívida fica saldada. Eles despedem-se, deixam uma palavra amiga e o conselho mais ouvido por estes dias: “Cuide-se!” É o suficiente para estas pessoas, que, de repente, se viram votadas à solidão, saberem que alguém se preocupa com elas. 

Helena Guimarães e o marido viram-se fechados entre quatro paredes. “O meu marido está muito irritado porque não sai." Rui Gaudêncio
Os sacos são deixados à porta. Contacto mínimo e cuidados máximos são a máxima de Vanderlei. Rui Gaudêncio
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Helena Guimarães e o marido viram-se fechados entre quatro paredes. “O meu marido está muito irritado porque não sai." Rui Gaudêncio

“O importante, aqui, é que as pessoas também se sentem acompanhadas. Às vezes são só cinco minutos de conversa e sentem-se um bocadinho melhor. As vozes não são desconhecidas e isso traz um bocadinho de conforto”, diz Vasco Morgado. 

Chegados ao segundo destino, na Rua Rodrigo da Fonseca, Helena Guimarães chega quase ao mesmo tempo com o almoço na mão, que foi buscar ao restaurante da frente. Estava na sua casa de Recife, no Brasil, quando a pandemia lá chegou e quis regressar. “Viemos embora porque lá também não estava bem. Assim como assim, temos aqui a assistência médica do sindicato dos bancários, se for preciso. Mas espero que não”, diz a senhora de 84 anos, que depressa lança um sorriso grande por ver tanta gente à sua espera.

Ela e o marido, “muito activos”, viram-se fechados entre quatro paredes. “O meu marido está muito irritado porque não sai. Tem 92 anos, mas tem muita vida e, olhe, é esta desgraça... Lá vai vendo uns filmes, anda pela casa, vai até à varanda e lá conversamos um pouco...” 

Sabe que devem ficar em casa. “E sei que tenho de arejar a casa. Passo a vida a lavar as mãos, a mudar de sapatos para evitar que esses terríveis bichos nos ataquem.”

Helena fez carreira como enfermeira e põe-se, por momentos, no lugar dos colegas que estão na linha da frente do combate à pandemia. “Ai, coitados! As fotografias com a cara já marcada das máscaras... Devem estar numa aflição porque o trabalho é tanto que não podem descansar.” Mas ela tem esperança que haja “assim uns cientistas, umas cabeças que consigam arrumar com estes animais terríveis que nos atacaram. Que a gente nem os vê...” 

Feitas as contas e deixadas mais umas palavras de conforto, é tempo de regressar à junta. As refeições que Dulce preparara já estavam a ser distribuídas. De tarde, haveria mais trabalho, ainda que não soubesse bem o que esperar. “As alterações são ao dia. Tem sido possível, mas os pedidos de apoio tem aumentado todos os dias”, diz Vander. Por agora, a missão mantém-no ali. “Cada vez mais gente precisa. Neste momento, muita gente que nunca precisou está a precisar de ajuda. Quero estar cá enquanto puder.”

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