Cobra Kai: não é preciso ter medo deste dojo

Trinta e quatro anos depois do primeiro filme, há uma continuação televisiva de Karate Kid disponível no YouTube.

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Johnny Lawrence e Daniel LaRusso, os "homens de meia-idade do karaté" DR

O maior evento desportivo dos anos 1980 não foi nenhum Mundial de futebol ou Jogos Olímpicos. Foi um campeonato de karaté, o All-Valley sub-18, e o combate do século foi Daniel LaRusso, o aluno lingrinhas de Mr. Myagi, contra Johnny Lawrence, o bad boy loiro dos maléficos Cobra Kai. Sabemos como acabou (spoiler alert de algo que aconteceu há 34 anos), com o golpe da garça – em inglês, crane kick — em cheio na cara do vilão. Karate Kid (em Portugal Momento da Verdade) é uma boa memória do cinema dos anos 1980 (de 1984) encharcada em power ballads e pop. Mas é sempre um perigo tentar recriar uma memória cristalizada que evoca bons sentimentos. Felizmente que Cobra Kai, a sequela televisiva de Karate Kid, atinge o equilíbrio, como diria Mr. Myagi a Daniel-san.

Trinta e quatro anos depois do primeiro filme da série, Cobra Kai é uma série de dez episódios produzida sob a chancela de conteúdos originais do YouTube (os dois primeiros estão disponíveis gratuitamente, os outros custam 2,49€ cada um) e conta com os dois actores originais de Karate Kid, Ralph Macchio (Daniel) e William Zabka (Johnny), agora como dois homens de meia-idade para quem o tal torneio de karaté foi o ponto de partida do que viriam a ser as suas vidas adultas. Daniel é um vendedor de carros (e tem sucesso no que faz) e homem de família, Johnny é um vencido da vida, alcoólico, sem emprego. Claro que as suas vidas se irão cruzar logo no primeiro episódio e claro que tudo irá acabar no tapete do All-Valley sub-18.

Há duas diferenças fundamentais em relação ao material de origem. Não há aqui Mr. Myagi porque Pat Morita, o actor que encarnou o sábio sensei japonês e que foi nomeado para o Óscar de melhor actor secundário, morreu em 2006 (mas é abundantemente recordado durante toda a série). E Johnny Lawrence deixa de ser apenas o rufia da escola com o único propósito de ser derrotado no final pelo herói. Aliás, em Cobra Kai é mais difícil compartimentar o bem e o mal. Não simpatizamos com tudo o que o bonzinho Daniel faz, ao mesmo tempo que vemos algum desejo de redenção em Johnny, na sua transformação em sensei de sabedoria bastante discutível.

No fundo, é isto que faz a diferença neste exercício de recuperação nostálgica que tinha tudo para correr mal. Era muito fácil meter Daniel e Johnny, mais de três décadas depois, dois “miúdos do karaté” feitos “homens de meia-idade do karaté” a lutar um contra o outro num torneio de veteranos, um com a faixa azul e branca na cabeça, o outro com o equipamento negro e sem mangas dos Cobra Kai — e de certeza que muita gente deve ter tido essa ideia. Vai mais pelo caminho da nova geração, que também se vai encontrar no torneio de karaté, mas de uma forma bem menos linear do que no filme e até, diríamos, bastante shakespeariana.

Cobra Kai também não vai pela ridicularização do seu material de origem, que era uma coisa mesmo muito típica dos anos 1980, em ambiente escolar suburbano, com os êxitos musicais da altura (You’re the best, Glory of love, etc.) e respectivos penteados. Há uma homenagem afectuosa, sempre com uma piscadela de olho ao passado, mas sem entrar pelo buraco negro da reverência e referência permanente – ainda assim, só quem conhece Karate Kid, mesmo não sendo um filho dos anos 1980, é que irá gostar de Cobra Kai. É para quem sabe o significado oculto de “wax on, wax off”, já tentou apanhar moscas com pauzinhos ou ficou com a respiração suspensa quando ouviu sweep the leg. Numa frase, à maneira de John Kreese, não é preciso ter medo deste dojo.

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