A Motown nos anos 1970, soul para o nosso presente

Uma série de reedições com a marca Motown permite descobrir como tempos diferentes comunicam entre si.

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A série 70s R&B, Soul and Funk Collector’s Reissues mostra o que mudava na “voz da jovem América”

I was born and raised in the ghetto / on the rundown side of the track / and there are forces who do everything they can do / to hold me back because my skin is black”. Os versos ecoarão com pungência neste momento histórico, quando nos Estados Unidos se ouvem as palavras de ordem “Black lives matter”. Aqueles versos não pertencem a este século. Foram cantados em 1973 por Smokey Robinson, no seu primeiro álbum a solo, Smokey.

O final da década de 1960 e início da de 1970 foi uma época de transformações profundas na Motown. A esplendorosa linha de montagem que fora a editora desde a sua fundação criara a banda sonora do seu tempo, na América e fora dela, mas fizera-o através de um controlo férreo dos seus artistas. O desejo de independência criativa – o primeiro a consegui-lo foi Marvin Gaye com What’s Going On – iria transformá-la para sempre.

As reedições que aqui abordamos, integrantes da série intitulada 70s R&B, Soul and Funk Collector’s Reissues, que não se concentra exclusivamente na Motown, mostram o que mudava na “voz da jovem América”. Mantinha-se a procura de excelência musical, no que à produção e composição diz respeito, e a ambição de uma abrangência que levasse cada canção ao coração de quem quer que a ouvisse, mas alterava-se algo fundamental: a necessidade de trazer para a música aquilo que era um país a viver em turbulência social, com uma guerra a ser travada no Oriente e o agudizar da luta pelo reconhecimento, de facto, dos direitos civis da população negra. Smokey reflecte-o na extraordinária Just my soul responding” – são dela os versos citados a início.

Verdadeira dramaturgia soul, é canção em que a orquestração e a expressividade da voz de Smokey Robinson tornam irrepreensível a exigência nela contida: o direito à dignidade – “If I’m bitter don’t blame me / It’s just my sould responding” – e o direito à terra – e eis que surgem cânticos nativo americanos sobre balanço soul. Conjuga-se essa voz activista – Holly que abre o álbum, é uma balada etérea assombrada pelo trágico retrato social nela contido –, e o puro deleite musical – ouça-se a aveludada Never can say goodbye”.

Três anos antes, já os Four Tops tacteavam a ideia de um álbum conceptual. Still Waters Run Deep é um disco de concórdia, assente na qualidade terapêutica das vozes do grupo. Podem ouvir-se guitarras ácidas em Reflections, podemos seguir o riff de teclado que marca o início de Bring me together como partícula excitante do funk por vir ou perceber a excelência dos Funk Brothers, a banda residente da Motown, na versão country-soul da Everybody’s talking de Nilsson, mas o que sobressai, sempre é o “love is the answer” que harmonizam como cura para a turbulência.

Eddie Kendricks, mestre dos falsetes nos Temptations, não se fixava unicamente na concórdia. People… Hold On (1972) pega em toda a tradição passada da Motown e abre as portas ao futuro – Girl you need a change of mind antecipa em duas décadas a nu-soul. Fá-lo enquanto afirma orgulhosamente uma identidade cultural afro-americana. My people… hold on tem  gospel e a cadência das congas em convívio com guitarras wah-wah e sintetizador Moog, e Someday we’ll have a better world aponta a um tempo em que a cor do rosto será nada mais que isso mesmo, uma tonalidade de pele. A Motown, de resto, pretendia representar esse mundo. Chegamos aos Rare Earth.

Não foram a primeira banda de brancos a assinar pela editora, mas foram a que obteve maior sucesso. Convidados a inaugurar uma nova chancela da editora, baptizada precisamente Rare Earth, eram filhos da Detroit onde a Motown convivia com os MC5 ou com Mitch Ryder And the Detroit Wheels. Tinham absorvido toda a soul e rhythm’n’blues que os rodeava, mas também a energia do rock’n’roll. Get Ready (1969) mostra-o de forma magistral.

A longa versão de Tobacco road é toda ela tensão aliviada pelo fervilhar do órgão Hammond e pelo sopro negro do sax. Magic key, por sua vez, soa a clássico de soul garageira. O momento mais memorável, porém, guardava-se no lado B, em “Get ready”, original de Smokey Robinson aqui prolongado por 21 minutos. A versão editada tornou-se um êxito, mas é na versão longa, onde a pandeireta alucinada marca o ritmo, em que a linha de baixo dá um par de ideias a Keith Richards (ouça-se Bitch, de Sticky Fingers) e em que as vozes dialogam com frenesim Sam & Dave que descobrimos uma banda em estado de graça. Memorável.

O mundo mudava, e com ele a Motown. O mundo mudava e, naquele início dos anos 1970, encontramos um 2016 que não suspeitávamos esconder-se ali.

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