A vida em estado de emergência não assusta o académico turco Sakir Dincsahin

O sobressalto turco não é de hoje, diz o académico, proibido, como todos os universitários turcos de deixar a Turquia. Se o golpe de há uma semana tivesse resultado, “o país estaria em guerra civil”.

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REUTERS/Alkis Konstantinidis

Istambul é uma das mais cosmopolitas cidades europeias mas não é possível perceber realmente o que isso significa sem deixar para trás a Cidade Velha dos monumentos imponentes e atravessar o Bósforo para a costa asiática. De ferry, o bairro de Kadikoy, fica apenas a 15 minutos. A distância não prepara para este outro mundo, uma Istambul menos conservadora e mais tranquila, repleta de bares, cinemas e livrarias. A Istambul que Sakir Dincsahin prefere.

Pode parecer estranho, mas este académico de 39 anos, professor de Política Turca e Pensamento Político Contemporâneo, insiste que pouco mudou na sua vida durante a última semana. Está proibido de sair do país e isso parece muito, mas garante que a única mudança é ninguém querer falar de mais nada a não ser de política. E ele, que já dedica grande parte do seu dia ao tema, preferia que os amigos tivessem outros assuntos de conversa.

O encontro começa em Kadikoy, num café. O objectivo é partilhar um pequeno-almoço turco, com tudo o que isso implica, e a mesa é pequena para o festim – queijos variados, tomate, pepino, fritos de queijo e de legumes, mel e chantili, pão salgado, bolos doces...

Com a ajuda do pequeno-almoço, num café com música baixinha onde às tantas se ouve fado, esta podia ser uma sexta-feira igual às outras, não fosse ser a primeira desde que uma tentativa de golpe de Estado fracassou deixando pelo menos 246 mortos e 2100 feridos.

Na prática, para além da omnipresença de bandeiras e dos cartazes a celebrar o fiasco da conspiração, esta parece mesmo uma sexta-feira como outra qualquer na grande metrópole.

Ah, o ferry a ligar a Istambul europeia à asiática é gratuito, como todos os transportes públicos, isso é diferente. Há uma semana, o governo salvou-se apelando aos apoiantes para saírem à rua e enfrentarem os militares; agora, não vá haver mais azares, quer que as pessoas continuem nas praças das grandes cidades e não poupa nos incentivos.

Para já, Dincsahin compreende todas as medidas de reacção à tentativa de golpe. Até estar proibido de sair do país. “A verdade é que muitos académicos pertencem ao movimento Gülen e até se saber quem esteve envolvido, eles têm de investigar toda a gente. Desde que as purgas não se transformem numa caça às bruxas e que os alvos sejam os conspiradores e não a oposição legítima…”, diz.

O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, e o Governo do seu partido, o AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), garantem que por trás da tentativa de golpe estiveram os seguidores de Fethullah Gülen, um imã moderado fundador de uma rede de escolas e ONG. Do seu retiro na Pensilvânia, o pregador clama inocência e lembra como ele próprio sofreu às mãos dos militares nos anteriores golpes de Estado.

Para o universitário, não há como duvidar que a razão, desta vez, esteja com Erdogan e com o AKP. É uma das ironias deste sobressalto turco: gente como ele, que nunca votou em Erdogan e que se opõem ao conservadorismo religioso do AKP, a suspirar de alívio com o fracasso de um golpe tentado por outros islamistas, conservadores como os que estão no poder.

As conspirações anteriores

A Universidade Yeditepe, onde Dincsahin ensina, sabe bem do que o movimento Gülen é capaz, nota. “O nosso reitor foi acusado por procuradores ligados a Gülen de organizar um golpe secular”, lembra. “Foi detido por causa de uma conspiração inventada, quando Erdogan e Gülen ainda eram aliados e os gulenistas controlavam calmamente bancos, tribunais, escolas, universidades, e ocupavam cargos no Exército e na imprensa.”

O reitor de Yeditepe foi acusado de ser um dos líderes da “organização terrorista Ergenekon”, um processo em que 500 pessoas foram detidas e 300 formalmente acusadas. Entretanto, foram todos inocentados, depois de ficar provado que os documentos sobre as conspirações que teriam cometido eram falsos e de alguns dos procuradores responsáveis pelas acusações terem sido, eles próprios, acusados de conspiração contra o Exército e de ligações ao movimento de Gülen.

A política turca nunca foi simples. Para os observadores externos, assim como para tantos turcos, continua a ser aterradora a impossibilidade de prever o futuro com algum grau de certeza. Nos últimos meses, lembra Dincsahin, houve dez atentados em Istambul e em Ancara, e isso era inimaginável há pouco tempo. No fundo, é também isso que ele quer dizer quando insiste que pouco mudou. O futuro já era imprevisível.

“Parece estranho, eu sei”

Os números são avassaladores: numa semana, mais de 60 mil soldados, polícias, juízes, professores do ensino privado e funcionários públicos foram suspensos, detidos ou colocados sob investigação. “Eu sei que parece estranho, nós também desconfiávamos que fosse possível eles [os gulenistas] terem tanto poder. Infelizmente, foi preciso um golpe e centenas de mortes para acreditarmos”, diz Dincsahin.

Na Europa, muitos estranham a rapidez da purga. Dincsahin não: “Toda a gente sabe quem são os infiltrados, pessoas que chegaram aos cargos só por causa da ligação de Gülen ao AKP, sem mérito. O Governo ia demorar a afastá-los, agora foi de uma vez.”

Para este universitário, o único aspecto assustador foram os slogans dos primeiros dias, “muito religiosos, pareciam ser contra os secularistas em vez de defenderem a democracia e as instituições”. Felizmente, o tom mudou. Agora, em vez de “Deus é grande” grita-se “A democracia venceu”, e o que se lê nos cartazes de todos os tamanhos espalhados por todo o lado é um slogan kemalista – “A soberania pertence à nação” (Hakimiyet Milletindir). A frase foi “usado por Atatürk [fundador da República] para dizer que a soberania não pertencia ao sultão, agora refere-se ao Parlamento”.

Islamistas contra islamistas

Dincsahin não tem memória dos golpes anteriores (1960, 1971 e 1980), mas ouviu muitos turcos mais velhos dizer que nunca viram nada assim. “O Parlamento bombardeado… Defensores do secularismo nunca o fariam”, diz. “Claro que a oposição ia estar toda contra o golpe e ao lado do Governo.”

Com os desconfiados, que acreditam que o golpe pode ter sido encenado, Dincsahin não perde muito tempo. “Há especulações sobre a verdadeira natureza do golpe. Tendo em conta a minha experiência em política turca e aquilo que tenho vivido, foi um golpe verdadeiro realizado por uma pequena clique dentro das Forças Armadas, os gulenistas”, resume. “Sim, há ironias e aspectos difíceis de explicar. É assim mesmo.”

Muitos politólogos turcos dizem que o que aconteceu há uma semana prova que a Turquia de hoje já não é país de golpes. Dincsahin não tem tanta certeza. “Se o golpe tivesse mesmo o apoio das chefias das Forças Armadas, se não fosse apenas desta clique islamista, a maioria podia discordar mas tinha ficado calada”, defende.

Críticas fáceis

Para quem vê de fora, defende, é fácil ser rápido a julgar. “Agora estamos a ser criticados por causa da suspensão da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, quando o que fizemos foi apenas derrogar alguns artigos enquanto o estado de emergência [aprovado pelo Parlamento na quarta-feira] estiver em vigor”, explica. “Fizemos exactamente o que a França fez. Se se compreende a França, mais compreensível é que a Turquia o faça. Nós já vivíamos em emergência, os políticos limitaram-se a legalizar esse estado.”

Para Dincsahin, “criticar Erdogan é uma coisa, defender golpistas é inaceitável”; e se eles tivessem sido bem-sucedidos, “estaríamos em guerra civil”. O académico apela à União Europeia como ele: “É preciso esperar. Pela primeira vez, há um consenso político, contra o golpe. Pode ser que o AKP aproveite. Não faz sentido que ataque a oposição legítima quando tem problemas bem maiores”. Seja como for, “sempre que a UE afastou e alienou a Turquia contribuiu para mais autoritarismo no país”.

Antes da despedida, a caminho da universidade, Dincsahin insiste num último chá numa esplanada de um jardim com vista para o mar de Marmara. Atrás há uma pequena feira de rua, onde se vende roupa e bijuteria; mais abaixo, um parque, cães a correr e miúdos a jogar basquetebol. O dia está muito quente e quase não se vê uma nuvem. Os navios e os ferrys passam com o ritmo habitual. “Vês, é isto o estado de emergência. Não se nota, pois não?”

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