Fethullah Gülen, percurso e lenda de um pensador islâmico e anti-islamista

Foi designado pela Time como uma das 100 mais influentes personalidades mundiais e como “o mais poderoso advogado da moderação no mundo islâmico”.

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Fethullah Gülen chegou a ser aliado do primeiro-ministro Erdogan Selahattin Sevi/Reuters

A crise política turca trouxe para primeiro plano a figura de Fethullah Gülen. O primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, acusa-o de ter criado um “Estado oculto” ou “paralelo” na Turquia e de tentar derrubar o governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) através de um “golpe judicial” graças à sua influência na polícia e na magistratura. No dia 17 de Dezembro, um procurador de Istambul, alegadamente discípulo de Gülen, ordenou dezenas de detenções, incluindo a de figuras do AKP, por suspeita de corrupção em concursos públicos.

Foram estreitos aliados durante uma década. Anulada a tutela militar, um objectivo comum, entraram em rota de colisão. Não jogam no mesmo plano: Erdogan aposta no controlo do poder político e vê Gülen como obstáculo. Este não quer o poder político, prefere a influência na sociedade. Não prega numa mesquita, difunde directamente o seu ensino na Internet ou por televisão. Abandonou há décadas o título de imã, sendo tratado pelos adeptos como hodja effendi — venerado mestre.

A figura de Gülen arrasta frequentemente o adjectivo “misterioso”. Vive, desde 1998, nos Estados Unidos, em Saylorsburg, Pensilvânia. É um pensador de inspiração sufi que dirige um movimento — Hizmet (serviço) ou Cemaat (comunidade) — com uma rede de escolas e universidades em quase 160 países, um império mediático, associações profissionais e uma federação empresarial. Tem milhões de simpatizantes na Turquia e países turcófonos. Uma grande parte da moderna elite turca, da vida académica ao mundo empresarial, segue os seus ensinamentos.

Assumiu-se como paladino da modernização do islão, da conciliação entre fé e razão, do diálogo inter-religioso, impulsionador da viragem da Turquia ao Ocidente. Condena o terrorismo, apoia o diálogo inter-religioso, dialoga com o Vaticano e com algumas organizações judaicas. Em 2013, a revista Time designou-o como uma das 100 mais influentes personalidades mundiais — “o mais poderoso advogado da moderação no mundo islâmico” e também “um dos mais intrigantes líderes religiosos mundiais”. Em 2005, os leitores das revistas Foreign Policy e Prospect tinham-no eleito “o intelectual mais influente do mundo”.

A lenda negra
Gülen arrasta também uma lenda negra. Nacionalistas turcos acusaram-no de ser “agente da CIA”, “marioneta dos EUA”, “cardeal escondido da Igreja Católica”. Os militares turcos quiseram-no julgar por conspiração para impor um “regime islamista”. Esta acusação é repetida por alguns neoconservadores americanos que o apelidaram de “Khomeini turco”. Um jornal americano de extrema-direita titulou há meses: “O mais perigoso islamista do mundo – vivo, de saúde, e a viver na Pensilvânia”.

O economista turco Dani Rodrik atribui-lhe a perseguição judicial aos generais, em julgamentos com provas forjadas. Enfim, Erdogan acaba de comparar o movimento de Gülen à seita xiita dos “Assassinos”, da Idade Média. Há outras comparações: “Uma seita como a Cientologia” (Der Spiegel), a Opus Dei, a Maçonaria ou a budista Soka Gakkai japonesa.

O analista turco Baram Balci, especialista do mundo islâmico no Carnegie Endowment for International Peace, propõe outra interpretação. “Visionário, Fethullah Gülen concentra a sua acção na educação das novas gerações para favorecer a emergência de novas elites crentes mas modernas, patriotas mas à vontade na globalização, piedosas mas sem complexos perante o sucesso económico. Possuindo o gosto do segredo e da influência, o movimento de Gülen tem fortes semelhanças com a ordem dos jesuítas, em que manifestamente se inspirou.” Por isso a escola está no centro da sua estratégia de modernização. “A escola antes da mesquita” foi o seu slogan.

O AKP de Erdogan e a comunidade de Gülen têm a mesma base social mas origens distintas. O AKP vem do “islão político”. Gülen do misticismo, precisa Balci. É altura de olhar o seu percurso.

Herdeiro de Nursi
Fethullah nasceu em 1941 (ou 1938) na conservadora província de Erzurum, na Anatólia, filho de um imã retirado. Inicia a actividade de pregador em 1963. Muda-se em 1966 para Esmirna. Organiza campos de férias para jovens. E faz várias rupturas.

A primeira consiste em defender a transferência da lealdade dos religiosos do antigo Império Otomano para a república secular criada por Mustapha Kemal Ataturk, em 1923, procurando uma nova forma de articulação entre Estado e religião. A república encerrou as confrarias sufis, condenando-as à clandestinidade. Gülen, criticando o laicismo radical, dirá que o “iluminismo” introduzido por Ataturk era indispensável à Turquia.

Assume-se como herdeiro da tradição sufista. Diz que o grande sufi Rumi (1207 –1273) foi o pensador místico que mais o marcou. Será decisivamente influenciado pelos escritos de Said Nursi (1877-1960), pensador de raiz sufista que não pertencia a nenhuma confraria. Nursi opunha-se ao laicismo radical de Ataturk e passou temporadas na prisão. O seu movimento, Nurcu, propunha uma revolução iluminista no islão: a harmonia entre o Corão e a modernidade, entre a razão científica e a revelação religiosa. Combateu a tentação do “islão político” – impor um Estado fundado no Corão.

Após o golpe militar de 12 de Março de 1971, Gülen é preso. Absolvido, torna-se pregador itinerante. Faz leituras do Corão e palestras sobre a ciência, inclusive sobre o darwinismo. Considera anacrónica a organização das antigas confrarias e imagina uma forma moderna de estruturação. É a partir desta ideia que irá edificar uma imensa rede centrada no ensino e nos media.

Dois especialistas do islão, o americano John Esposito e o turco Hakan Yavuz (Turkish Islam and the Secular State, the Gülen Movement, 2003) explicam esta opção. Para Gülen, a educação é a chave para a emancipação dos muçulmanos. “Estamos a falar da educação secular, das ciências e das humanidades – e obviamente também da religiosa”, diz Yavuz numa entrevista. “Religião e ciência não estão em tensão, não se excluem mutuamente, devem trabalhar em conjunto.”

O desafio islamista
Em 1981, resigna ao cargo de imã e torna-se um religioso independente. Funda o seu primeiro colégio em Esmirna. Dispõe já de uma vasta rede de discípulos. Em 1989 transfere-se para Istambul, passando a pregar na capital intelectual e financeira do país. O fim da União Soviética abre caminho à rápida expansão das suas escolas nos países turcófonos da Ásia Central. Implanta-se na Europa, nos EUA, na Ásia. Tem escassa presença nos países árabes.

O sangrento golpe militar de 1980 confronta Gülen com a ausência de uma estratégia perante um regime político tutelado pelo exército. Adopta uma política de compromisso. Defende o carácter secular do Estado mas exige que este cesse de impor um “laicismo jacobino” na sociedade civil. Nas eleições de 1983, apoia o conservador Torgut Ozal, que o vai proteger. Terá também excelentes relações com o social-democrata Bülent Ecevit, tolerante em matéria religiosa.

Ao mesmo tempo, incita os adeptos a concorrerem a cargos no aparelho de Estado, a pretexto de limitar a hegemonia dos militares e dos secularistas radicais. Terá uma crescente presença em sectores como a polícia, a justiça, o ensino e, provavelmente, os serviços secretos. Os gulenistas sempre rejeitaram as alegações de “infiltração”, invocando o direito de, numa democracia, qualquer cidadão qualificado servir o Estado.

É também nesta época que o islamismo ganha maior expressão. Em 1983, o islamista Necmettin Erbakan funde vários partidos no Partido do Bem-Estar (Refah), que se torna no primeiro partido turco nas eleições de 1995, com 23,3% dos votos. No ano seguinte é nomeado primeiro-ministro, em coligação com dois partidos conservadores. Será destituído por pressão militar, no “golpe pós-moderno” de 28 de Fevereiro de 1997. O Refah é ilegalizado.

Gülen não se solidariza com Erbakan, antes dando graças por a Turquia ter escapado a um “círculo vicioso” como o argelino. Explica o politólogo turco Ömer Taspinar, da Brookings Institution, que tanto o conflito de hoje com Erdogan, como o dos anos 1990 com Erbakan exprimem o choque entre duas tradições. “O AKP não é um clássico partido islamista mas vem da tradição ideológica de Erbakan, conhecida como Milli Gorus (Visão Nacional), que segue os preceitos do clássico islão político (…) e partilha a tradição da Irmandade Muçulmana.” A Milli Gorus privilegia a umma, a comunidade mundial dos crentes, menosprezando o Estado-nação como invenção ocidental. Inversamente, Gülen aposta no Estado democrático moderno, na ancoragem da Turquia no Ocidente e na adesão à EU.

A grande divergência, prossegue Taspinar, está relacionada com a política e o papel do Estado. “Ao contrário da Milli Gorus, da Irmandade Muçulmana ou do AKP, a tradição Nurcu-Gülen pretende estar fora dos partidos políticos.”

Uma das piores ofensas a Gülen é qualificá-lo de islamista. Tal como Nursi, ele defende que o islão é uma religião e jamais um sistema político. O Corão não é modelo para o Estado. “A religião que dá uma resposta a todas as questões é uma heresia, corresponde a uma espécie de delírio e a uma desconexão com a realidade”, resume Faouzi Skali, antropólogo e sufi marroquino.

A ruptura com Erdogan
A seguir ao “golpe pós-moderno”, os militares não se comoveram com o anti-islamismo de Gülen, antes o qualificaram como “a maior ameaça islamista” e anunciaram a intenção de o julgar por “infiltração do Estado”. Será julgado à revelia e absolvido em 2006. Entretanto, partira em 1998 para os EUA a pretexto de tratamento médico.

Alguns líderes do Refah tiraram as conclusões do “golpe pós-moderno”. Em 2001, Erdogan, Abdullah Gül, Bülent Arinç e muitos outros abandonam Erbakan e fundam o AKP, com um programa democrático e europeísta, reconhecendo o Estado laico. Era uma vitória de Gülen que muito pesou nessa reconversão. A viragem à Europa e a adopção dos critérios de adesão foram um instrumento decisivo na limitação da hegemonia dos militares e secularistas radicais.

Até 2007, as relações entre Erdogan e Gülen foram dominadas pela cooperação. Após os dois grandes julgamentos que “decapitaram” o exército, Erdogan deixou de precisar de Gülen. Este, por sua vez, começou a criticar o autoritarismo do primeiro-ministro, a sua política externa e o projecto constitucional de um regime presidencialista.

Manifestou desagrado pela operação da flotilha para Gaza, em 2010, pela repressão dos ocupantes da Praça Gezi no Verão passado, pela crescente aproximação ao Irão, pela ruptura com Israel, pelo alinhamento com a Irmandade Muçulmana ou, ainda, pelo relaxamento dos laços com a NATO e com a UE a favor de um investimento na Organização de Cooperação de Xangai. Os gulenistas começaram a acusar Erdogan de fazer uma regressão aos “demónios” da tradição Milli Gorus.

“Gülen e Erdogan encaram-se um ao outro como uma ameaça e estão a usar os seus instrumentos no Estado e na justiça para se minarem um ao outro”, resume o analista Fadi Hakura, da Chattam House de Londres. Erdogan aproxima-se dos militares, enquanto Gülen se aproxima do grande rival político de Erdogan, o Presidente Abdullah Gül.

Arriscam-se a perder os dois. As acusações de corrupção podem ser fatais para Erdogan. O nome do seu partido não foi escolhido ao acaso. É designado por “AK”, que em turco quer dizer “ limpo”. Por outro lado, Erdogan aproveitou a crise para lançar uma operação de controlo da justiça. Está em curso uma maciça depuração no aparelho de Estado. Fica a dúvida: os seguidores de Gülen servem o Estado ou obedecem à “comunidade”?

Se permanece esta dúvida sobre o modo como o hodja effendi exerce a influência, o seu pensamento nada tem de misterioso ou escondido: diz as mesmas coisas há décadas. O problema é outro. Ele sempre quis estar “acima da política”, anota Taspinar. Mas, ao longo dos últimos 20 anos, a polarização entre secularistas e islamistas forçou o movimento a envolver-se crescentemente no terreno político – o que agora paga.

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