Nice, o massacre que ninguém podia prever

Um homem vindo do nada semeou o terror nas ruas de Nice. A arma é também improvável: um camião.

Ao volante de um camião de 19 toneladas, o homem disse aos polícias que zelavam pela segurança da festa do Passeio dos Ingleses, em Nice, que ia ali entregar gelados. A festa era a do 14 de Julho, feriado nacional em França, Dia da Tomada da Bastilha, e a polícia deixou-o passar. O resto é conhecido, e é terrível: o camião foi usado como arma contra a multidão, matando homens, mulheres e crianças (84 mortos e mais de 200 feridos, muitos em estado grave) até ser parado, a tiro, pela polícia. A dúvida colocou-se de imediato: um acto de terrorismo, por obediência ou afeição ao Daesh ou grupos similares? Ou um acto de terror levado a cabo por um solitário sedento de vingança ou de sangue, por motivos que ainda se desconhecem? Para as vítimas, o resultado é indiferente. O seu assassínio, comprovadamente premeditado (o camião foi alugado dias antes, havia réplicas de armas no interior, embora sem outro préstimo que o de uma provável exibição intimidatória), levou já a Europa a repensar medidas de segurança, a convocar reuniões, a accionar alertas. Mas o que esperar de um “camião de gelados” numa festa? Tudo menos um massacre. O efeito de surpresa, transformada em terror instantâneo, foi a primeira arma do assassino. A segunda foi um camião, daqueles que circulam aos milhares nas nossas cidades. Tal como no 11 de Setembro de 2001 aviões foram usados como bombas, também o camião de Nice serviu ele próprio de arma, sem homens-bomba a bordo ou explosivos telecomandados. Isto deve pôr-nos de alerta contra qualquer coisa que, à nossa roda, possa vir a ser usada por um qualquer louco ou assassino solitário como arma letal? Não. Porque isso seria viver num clima de pavor constante, concretizando um desejo maior do terrorismo. Mas, e isso não deve ser descurado, devemos prevenir eventuais descuidos de segurança. Apesar da demagogia de alguma direita francesa, será injusto atribuir à pusilanimidade de Hollande o flanco aberto em Nice, apesar do preço demasiado trágico. O autor do atentado não tem, que se saiba, qualquer ligação conhecida a fanáticos islâmicos como nenhum grupo, pelo menos até à noite de sexta-feira, reivindicou o “patrocínio” do massacre. Na polícia, tinha cadastro por violência doméstica e furtos menores. Havia razões para suspeitar dele para lá disso? Não havia, ao contrário de casos (como o dos atentados na Bélgica) onde houve claramente um “baixar da guarda” perante perigos reais. Nas próximas horas ou dias talvez venha a saber-se algo que altere estes pressupostos. Talvez o autor do crime, um tunisino de 31 anos com dupla nacionalidade (também francesa) quisesse vingar-se de alguém ou de alguma coisa (matar famílias por estar a divorciar-se?), ficar na história por um crime em larga escala, agradar aos fanáticos do EI mesmo sem qualquer ligação prévia. Tudo isto são especulações. Só uma investigação séria poderá fornecer-nos mais pistas. Uma coisa é certa: por cada fanático disposto a matar, há milhões dispostos a viver. Será deles a vitória.

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