Artistas brasileiros ocupam Ministério da Cultura contra o governo de Temer

No Rio de Janeiro, núcleo principal dos protestos contra o fim do Ministério da Cultura, artistas prometem manter a ocupação até o novo executivo cair.

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E a orquestra tocou: "Fora, Temer"

O novo Presidente interino do Brasil, Michel Temer, pode sempre dizer que a sua primeira escolha foi uma mulher. Mas depois de ter convidado seis mulheres para dirigir a recém-criada secretaria nacional de Cultura, e todas terem recusado – a cantora Daniela Mercury não quis; a actriz Bruna Lombardi também não –, Temer ouviu finalmente um “sim”. De um homem. Na quarta-feira ao final da tarde, o nome do novo secretário nacional de Cultura, Marcelo Calero, começou a circular publicamente, mas isso não fez grande diferença no Rio de Janeiro, onde meia centena de artistas e profissionais do sector cultural ocupam desde o início da semana a sede carioca do Ministério da Cultura, eliminado pelo novo governo provisório em nome de uma anunciada redução de ministérios e da máquina do Estado.

Enquanto alguns agentes culturais ou colectivos reivindicam a manutenção do Ministério da Cultura – Caetano Veloso defendeu isso mesmo num artigo publicado no jornal O Globo, sem condenar directamente o novo governo (“Eu, neste primeiro momento do governo Michel Temer, só tenho mesmo é uma grande queixa a fazer: a extinção do Ministério da Cultura é acto retrógrado”) –, o grupo que ocupou o segundo andar do Palácio Capanema no Rio pede a saída de Temer e promete não desmobilizar facilmente. “Isso não é uma invasão, é uma ocupação política, para mostrarmos que estamos insatisfeitos com a atitude desse traidor, um vice [Michel Temer] que desmonta tudo o que a Presidente fez. A gente não reconhece esse governo”, diz a artista Fátima Verónica Santos. “Não planeamos sair daqui”, garantiu Isabel Gomide, actriz e produtora. Quem quer que fosse nomeado iria enfrentar a oposição deles. “Mesmo o Juca”, garante Isabel Gomide, referindo-se ao último ministro de Cultura de Dilma, Juca Ferreira. “Eles tentaram várias mulheres. As mulheres, graças a Deus, disseram não.”

O que as brasileiras pensam sobre o governo masculino de Temer

Desde o último fim de semana, uma dezena de sedes regionais afectas ao Ministério da Cultura foram ocupadas em várias cidades brasileiras. No Rio, núcleo principal desses protestos, a ocupação tem tido maior visibilidade, mesmo em tão poucos dias, porque vários artistas famosos se solidarizaram, deram apoio ou voluntariaram-se para fazer um show. Otto e Arnaldo Antunes cantaram na quarta-feira à tarde. Caetano está previsto para sexta.

A nomeação de Marcelo Calero, até agora secretário municipal de Cultura no Rio e alguém que reconhecidamente tem um bom diálogo com a comunidade artística e cultural da cidade, foi recebida como “uma tentativa de seduzir os artistas”, assinalou um colunista da Folha de S. Paulo, Maurício Meirelles. Diplomata de carreira, depois de passar pela embaixada do Brasil no México, Calero presidiu o Comitê Rio 450, responsável pela programação dos 450 anos da cidade, comemorados em 2015. Ocupou, no último ano, a secretaria municipal de Cultura do Rio. “A resistência supera-se pelos resultados”, declarou, ao assumir a pasta.

Alguns produtores culturais cariocas não deixaram de elogiar a actuação de Calero na cidade, sobretudo pela sua atenção a manifestações culturais da periferia, fora do eixo centro-zona sul. Mas ao mesmo tempo criticaram Calero por ter aceitado fazer parte do novo governo, que consideram ilegítimo. “Continuo gostando de você, apesar de lamentar profundamente que sua carreira na área da Cultura tenha acabado tão precocemente. Sim, ela acabou”, escreveu no seu Facebook Raphael Vidal, produtor do festival Literário Fim de Semana do Livro no Porto. “O governo está errado se acha que a escolha do diplomata pode desmobilizar os protestos. O mais provável é que o nome de Marcelo Calero entre em declínio entre os artistas, como alguém que traiu a sua confiança”, prevê Maurício Meirelles na Folha.

Temer anunciou Calero, ao mesmo tempo que prometeu o aumento de verbas para a Cultura em 2017 – sem avançar valores ou detalhes. “Não adianta você ter mais dinheiro, que eu nem acredito que vai ter”, diz Eliane Costa, que negou o convite para dirigir a secretaria nacional de Cultura, repudiando um “governo golpista” e recusando “ser coveira do Ministério da Cultura”.

“Ainda que tivesse, o campo da cultura não pode se reduzido a questões orçamentárias. É preciso ter políticas públicas. E política pública na cultura se dá a partir da diversidade, da pluralidade, das decisões partilhadas, dos direitos culturais. E a gente que vê que essas questões são absolutamente desprezíveis para esse governo.”

As criticas e a pressão contra a extinção do Ministério da Cultura vêm de um espectro amplo mais do que a esquerda: ela inclui, por exemplo, o ex-ministro da Cultura de Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, ou o ex-Presidente da República José Sarney, cuja gestão criou o Ministério da Cultura em 1985. O fim de um ministério que tem a idade do fim da ditadura e da redemocratização do país é encarado como um retrocesso. Em 1990 o governo neo-liberal de Fernando Collor de Mello também dissolveu o Ministério da Cultura numa secretaria, situação nebulosa que foi revertida com o impeachment do Presidente e a nova gestão de Itamar Franco. Temer anunciou a extinção do Ministério da Cultura e a sua fusão com o Ministério da Educação, mas face às reacções negativas, tem dado sinais titubeantes: depois de dizer que a nova secretaria da Cultura seria integrada dentro do Ministério da Educação, levantou a possibilidade de autonomizar a secretaria, que só teria de responder directamente ao Palácio do Planalto, uma tentativa de revalorizar a área. Voltou a recuar – a Cultura está subordinada ao Ministério da Educação, comandado por um ex-deputado sem qualquer experiência em qualquer das áreas, Mendonça Filho. Temer também anunciou que não iria mexer na estrutura já existente – a Cultura limitar-se-ia a perder o estatuto de ministério, como se fosse uma mera mudança burocrática ou de nomenclatura.

“Existe uma ideia muito forte, não só no Brasil mas no mundo, de que a direita é boa gestora e a esquerda é má gestora”, diz Francisco Bosco, que até esta semana estava à frente da Funarte, um instituto do governo responsável pelas políticas de apoio às artes, congénere brasileira da Direcção-Geral das Artes.

Na semana passada, quando assinou a medida provisória que extinguiu o Ministério da Cultura, Temer automaticamente paralisou todas as actividades daquele órgão público. “Em menos de 24 horas, todas as áreas técnicas do ministério caíram no limbo estatutário. Ninguém podia assinar nada. Aliás, a situação não se resolveu. O ministério está todo parado por causa de um acto de alguém que se arvorou um gestor eficiente”, diz Francisco Bosco.

Eliane Costa, que foi gestora de patrocínios culturais da Petrobras entre 2003 e 2012, lamenta o “desmantelamento de um Ministério da Cultura que custou muitas lutas”. “A cultura deixou de ser vista como central nos processos de desenvolvimento. Ou, pelo contrário: talvez seja e, por isso mesmo, está sendo retaliada. Não acho que o novo governo não dê importância à cultura. Eu acho que ele dá e, porque dá, está esvaziando a cultura.”

“Temer acabou revelando o que ele pensa sobre a cultura e sobre as mulheres: como uma espécie de ornamento, uma instância simbólica ornamental”, diz Francisco Bosco.

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