A estratégia da tensão

Uma angústia nascida do arrastamento e do prolongamento de situações quotidianas e mais ou menos anódinas em si mesmas – ou não fosse este um filme americano “iraniano”.

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Uma angústia nascida do arrastamento e do prolongamento de situações quotidianas – ou não fosse este um filme americano “iraniano”.

Vimos, no ano passado, um filme americano “iraniano”, inteiramente produzido no seio de uma comunidade de origem iraniana – era esse curioso filme de vampiros chamado Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa, de Ana Lily Amirpour. 99 Casas, se bem que noutro nível de realidade (embora não isenta dos seus “vampiros”, ainda que metafóricos), coloca-nos outra vez numa pista iraniana made in USA. O realizador Ramin Bahrani é de origem iraniana, mas nascido nos Estados Unidos, o argumentista Amir Naderi é um iraniano emigrado, com obra no seu país natal ao longo dos anos 70 e 80 antes de partir para a América na década de 90. Para o contexto social em que se desenrola 99 Casas, esta informação não terá relevância especial: estamos na Florida, mergulhados no negócio das penhoras, onde um “vampiro” (Michael Shannon, “ícone” do cinema independente americano contemporâneo, mais uma vez muito bem) ganha a vida a recuperar para os bancos as casas cujos proprietários deixaram de conseguir cumprir as obrigações das hipotecas, realidade dolorosa com repercussão universal, como aqui em Portugal bem se viu nos últimos anos.

A narrativa é uma história de aprendiz de feiticeiro: a personagem de Andrew Garfield, despejada por Shannon na sequência inicial, vai trabalhar para ele, com o objectivo de conseguir recuperar a casa que perdeu. Nada corre bem, entre o conflito moral provocado por tão desalmada actividade – ou pela venda da alma ao diabo e a ambiguidade legal em que certos aspectos dessa actividade decorrem (uns certos ecos de noir também percorrem 99 Casas).

A história é severa, as interpretações são sólidas, mas o que é de facto interessante no filme devolve-nos à pista iraniana: está logo nessa cena de abertura em que Garfield (mais o filho e a mãe, a tão desaparecida Laura Dern) é despejado, cena que Bahrani prolonga até ao limite da tensão, dividindo o olhar por todos os intervenientes (Garfield, Shannon, Dern, a criança, os polícias). E está noutras cenas, de teor semelhante ou não, em que uma situação básica é explorada num crescendo de tensão e energia até atingir uma reverberação à beira da insuportabilidade. Não parece exagerado dizer que isso lembra um princípio bem reconhecível em muito cinema iraniano dos últimos anos – aquela angústia nascida do arrastamento e do prolongamento de situações quotidianas e mais ou menos anódinas em si mesmas. Pese a sobriedade geral do projecto, a concisão sombria do seu discurso económico, a justeza dos seus actores, é a força dramatúrgica destes momentos que traz algo de especial a 99 Casas.

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