“Área do medicamento foi profundamente sacrificada. Factura-se menos 30%”

O presidente do Health Cluster e do laboratório Bial, Luís Portela, considera que a política de saúde dos últimos quatro anos foi demasiado centrada nos medicamentos. E lamenta que pelo caminho tenham ficado outras reformas, como a reorganização dos hospitais.

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Luís Portela, presidente do Health Cluster e do laboratório Bial, PATRÍCIA MARTINS

A investigação que se faz em Portugal precisa de sair das universidades para as empresas ou há o risco de o conhecimento gerado ficar perdido pelo caminho. A convicção é de Luís Portela, 64 anos, médico de formação e chairman da farmacêutica Bial.

O também presidente do Health Cluster Portugal – um pólo de competitividade da saúde que pretende dar asas internacionais a este sector – considera que a política de saúde dos últimos anos foi demasiado focada no sector do medicamento e garante que isso atrasa o desenvolvimento de fármacos. “O sector teve de apertar o cinto e nos últimos anos foram despedidas 2500 pessoas. Houve algum exagero” nas medidas tomadas, diz, e “quem vier a seguir, da mesma cor ou cor diferente, deverá levantar um bocadinho o pé do acelerador”. Em entrevista ao PÚBLICO, elogia ainda o trabalho do ministro Paulo Macedo no combate à fraude, apesar de assegurar ter sido surpreendido pelas recentes buscas na Bial.

A sua formação de base como médico influenciou o seu percurso de gestão na indústria farmacêutica?
No princípio da minha carreira senti muito a falta de uma base de gestão. Superava a falta de qualidade com a quantidade. Nos primeiros quatro anos como presidente da companhia – e fiquei presidente com 27 anos – não tirei um dia de descanso. Com o tempo e algumas acções de formação comecei a sentir cada vez menos isso. Em paralelo fui sentindo algum à vontade em grandes decisões e nas pequenas decisões, sobretudo na área da investigação. Como médico tinha uma sensibilidade para as matérias que estávamos a investigar que, como economista, nunca poderia ter. Às vezes digo que se fosse economista não tínhamos feito o percurso de desenvolvimento e de investigação que fizemos porque saberia fazer as contas e concluiria que estávamos a arriscar demais.

Tem criticado as empresas por não aproveitarem devidamente o conhecimento e investigação gerada nas universidades. Porquê? O que as universidades criam não potencia o lucro?
Portugal nos últimos 20 anos enriqueceu muito. Apostou na educação, apostou na ciência e conseguiu resultados notáveis. Hoje temos um número de investigadores por 100 mil habitantes já bastante superior à média europeia e mesmo aos Estados Unidos ou ao Japão. Esses investigadores foram produzindo e temos um número de publicações científicas que está ao nível da média europeia.

Uma influência de Mariano Gago?
Sim, foi um homem que teve o privilégio de gerir de uma forma muito apropriada a ciência. Teve também esta sorte: não se estragou o que ele fez. Foi uma política consistente de ciência ao longo de 20 anos cujos resultados estão à vista. Hoje temos investigadores de grande qualidade que publicam nos melhores sítios, nas diferentes áreas, em geral, e na saúde, em particular. Só que não fizemos nestes 20 anos nenhuma aposta séria na inovação. Temos investigadores nas empresas em número inferior à média europeia. Sem pessoas qualificadas nas empresas para fazerem investigação é difícil termos projectos inovadores e produtos e serviços que sejam competitivos à escala global. Com a riqueza acumulada de conhecimento que temos nas universidades e nos centros de investigação é uma pena não termos uma economia a tentar acompanhar essa dinâmica.

Como se faz isso?
Começaria por tentar levar os bons jovens portugueses que temos – a geração mais bem preparada que o país teve – para as empresas. Em Espanha foi detectado o mesmo problema e hoje há incentivos às empresas espanholas de até 70% do ordenado de um jovem doutorado nos três primeiros anos na empresa. O jovem doutorado, com humildade, tem conhecimento para estudar os processos produtivos, características do produto ou serviço e ver onde pode melhorar. Depois conhece os centros de investigação e universidades e a ciência faz-se em rede.

A Bial criou o primeiro medicamento português a conseguir chegar ao mercado e internacionalizar-se. O que fez de diferente?
Diziam que era muito difícil, impossível. Mas fizemos. Procurámos constituir uma equipa de investigadores. Temos 100 pessoas e começámos com três ou quatro portugueses a fazer investigação. São muito capazes, de nove nacionalidades, mas todos europeus. Alguns vieram de empresas multinacionais, outros de universidades europeias. Ao longo dos últimos 20 anos fizemos contratos com 120 centros de investigação. A ciência faz-se em rede. Os meus investigadores não têm de saber fazer tudo, mas têm de saber onde está quem sabe. Assim conseguimos levar o primeiro medicamento de origem portuguesa ao mundo. Em Novembro submetemos o segundo para a doença de Parkinson.

Em que áreas estão focados?
Sistema nervoso central e cardiovascular. Os dois primeiros produtos são da área do sistema nervoso central e o terceiro será na área cardiovascular. É um produto com o qual gostaríamos de estar já a entrar no mercado, mas quando se passam por crises, e temos baixas consecutivas de preços, temos margens diminuídas e menos capacidade de investir em investigação. O produto só em 2019 poderá chegar ao mercado.

A palavra austeridade marcou nos últimos anos muitas áreas. Que avaliação global faz desta legislatura?
Nunca me meti em política e tenho uma visão muito independente, mas tinha algumas reservas, porque não conhecia as pessoas. Perante uma situação tão complicada em que o país estava temi que não houvesse pulso para fazer acontecer as coisas. O país tinha que se concentrar na questão da dívida e controlo da despesa e acho que isso foi feito com sucesso. Mas não foram feitas algumas reformas e era o tempo apropriado.

Reformas na saúde?
Reformas em geral e na saúde. Na justiça e administração pública, poderia ter sido feito mais. O Governo sai muito airosamente destes quatro anos de governação, não só porque conseguiu controlar as coisas em termos orçamentais como criar uma imagem diferente do país a nível interno e, sobretudo, externo. O país é de novo respeitado, mas é preciso dinamizar a economia. Precisamos muito de ter um bom Ministério da Economia para fazermos na economia nos próximos dez anos aquilo que fizemos na ciência nos últimos 20. Assim completaríamos o ciclo, tínhamos o conhecimento e íamos aplicá-lo criando riqueza que possa alimentar o investimento em ciência. Se não fizermos isso o investimento em ciência não pode continuar como tem sido.

Referiu que a conjuntura atrasou o vosso fármaco da área cardiovascular e falou da baixa de preços. Há quem critique o ministro da Saúde por só ter tido medidas na área da política do medicamento.
Dou nota positiva ao ministro Paulo Macedo. Foram feitas coisas importantes e foi pena que não fossem feitas mais. Foi importante controlar o orçamento e ele fê-lo bem em termos contabilísticos. Em termos estratégicos não fez tão bem, na minha opinião bateu demais num sector. A área do medicamento foi profundamente sacrificada. Os medicamentos hoje têm um preço médio em Portugal 30% inferior ao que tinham há quatro anos. Vendem-se as mesmas quantidades e factura-se menos 30%. Não há milagres e, portanto, as empresas foram profundamente afectadas. O sector teve de apertar o cinto e nos últimos anos foram despedidas 2500 pessoas. Houve algum exagero em medidas muito apertadas na área do medicamento.

Mas as rendas não eram excessivas, como diz a tutela?
Provavelmente a tutela referia-se às multinacionais e isso está por demonstrar a nível interno. Precisamos de uma capacidade produtiva boa para poder atacar a internacionalização. Se as empresas não tiverem margem para investir como é que vão estar competitivas para poderem internacionalizar-se? Quem vier a seguir, da mesma cor ou cor diferente, deverá levantar um bocadinho o pé do acelerador. Não poderá sacrificar tanto o mesmo sector.

Que mais reformas ficaram por fazer?
O ministro descortinou a área da fraude e isso foi saudável. A fraude é algo que deve ser evitado. Mas em geral fez pouca reforma na saúde. É necessária uma reforma a nível hospitalar. Há algum excesso de oferta no espaço litoral e entre Viana e Setúbal. É necessária uma maior racionalização de utilização dos recursos, o que passa por uma maior especialização. Nem todos os hospitais têm que ter tudo. Os cuidados continuados também foram uma meia aposta do Governo.

Faltou coragem para essas reformas? Veja-se o que aconteceu com as tentativas Correia de Campos.
Não quero adjectivar, mas o professor Correia de Campos sabia o que era necessário ser feito mas não teve o talento para o fazer. O Dr. Paulo Macedo penso que sabia que era necessário mas não o conseguiu fazer. Alguém terá de o fazer.

Um dos vossos estudos do Health Cluster, feito pela Porto Business School, falava precisamente da necessidade de se encerrarem serviços e hospitais sem qualidade.
Eu não diria tanto fechar, diria criar serviços mais fortes, fazendo algumas transferências de profissionais, maior especialização e concentração em alguns hospitais. Para termos um bom serviço de uma área importa ter quantidade de médicos, de doentes e excelentes equipamentos. Isso não pode ser reproduzido em todos os hospitais.

Um dos problemas do modelo de financiamento dos hospitais não é focar-se demasiado na produtividade?
Para termos qualidade basta vermos os bons exemplos da gestão das unidades de saúde familiares. Quando as pessoas foram responsabilizadas, quando foram criadas formas de remuneração e de incentivo ao bom trabalho apropriadas, as coisas funcionaram bem. Isso deve ser alargado. Deve dar-se a possibilidade do doente escolher onde quer ser tratado. Isto é uma busca de qualidade, porque o doente quer ser tratado onde há melhores resultados. Se os hospitais forem remunerados pelo sucesso então procuram ser eficazes.

Destacou o combate à fraude como uma área de sucesso. Recentemente (Julho) a Bial voltou a aparecer num processo de mais uma alegada burla ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), envolvendo delegados e médicos. Foi surpreendido?
Tomei conhecimento da situação quando a Polícia Judiciária entrou nas nossas instalações para fazer buscas. Fomos surpreendidos. Não sabíamos o que se passava e, francamente, também não sabemos. A Bial é uma empresa cumpridora. Cumprimos os códigos e a legislação existente e não admitimos que os nossos profissionais possam calcar ou tomar atitudes ilícitas ou até ilegais. Pelo que conseguimos apurar até agora, trata-se de uma acusação feita aos colegas de um ex-profissional Bial envolvido no processo Remédio Santo. Estamos colaborantes, é do nosso interesse que a verdade venha à tona.

Como é que estando na indústria vê o problema com os medicamentos inovadores e a aposta nos genéricos?
Há espaço para os medicamentos inovadores, que as pessoas e profissionais de saúde desejam para solucionar as patologias que ainda não têm solução. Quem investe em investigação são essas empresas que trazem esses produtos. Os produtos antigamente chamados cópia, e que agora se chamam genéricos, são produtos que têm o seu espaço. O que me parece é que nalguns estados europeus, como em Portugal, quem governa com a preocupação de poupar dinheiro na área da saúde tem assumido legislação e normas que empurram o consumidor para o genérico e isso parece-me uma forma menos correcta em termos de concorrência e de liberdade de escolha.

O tema da inovação ganhou nova expressão com o debate da hepatite C. O preço tornou-se uma preocupação. Como vê a questão dos inovadores conjugados com a sustentabilidade do SNS?
As empresas farmacêuticas têm dez anos para recuperar o investimento. Há produtos que se vendem mais, com uma perspectiva de consumo de mais consumidores e em muitos mercados e isso faz com que o preço possa ser mais baixo. Há produtos para faixas de população muito pequenas e que tenderão a ser mais caros porque a capacidade de recuperação é menor.

Mas não era o caso da hepatite C. É uma infecção com muitos doentes.
Há outros fenómenos. Há quem tenha dez anos para recuperar e que, mesmo depois disso, se o produto se implantou bem, pode continuar a recuperar. No caso da hepatite o número de doentes que existe vai-se aproximar de zero e a empresa não tem dez anos para recuperar o investimento. O preço terá de ser mais elevado. Tem de haver uma solução de bom senso. As empresas precisam de preços razoáveis que lhes permitam a recuperação do investimento, mas que também não afectem o orçamento do Estado ou do consumidor.

No Health Cluster a tentativa de unir os parceiros do sector tem sido uma das vossas apostas. Que resultados têm tido?
As coisas estão estagnadas, mas o ano de 2014 foi bom. Em seis anos quase duplicámos as exportações [para 1162 milhões de euros]. Temos tido a preocupação de conjugar os esforços da academia, das empresas, dos hospitais e das empresas – desde as grandes multinacionais até às pequenas start-up. Queremos conjugar esforços no sentido de ter uma saúde que se faça de uma forma rentável, com qualidade e capaz de ser exportada. Em termos da saúde, temos investigadores ao mais alto nível. Em 2013, 29% da produção científica foi feita na área das ciências da saúde.

E que áreas o país tem potencial para desenvolver?
Os principais mercados para onde exportamos são a Alemanha, Angola, Estados Unidos, mas também Espanha e França. Estamos a fazer a nossa internacionalização não só no terceiro mundo mas também no primeiro mundo. A nossa conjugação de esforços é na aposta na qualidade. A Europa não sabe que fazemos bem saúde. Conhece-nos pelo vinho do Porto, pela cortiça, pelo calçado mas não pela saúde. Temos de criar índices de notoriedade. No Health Cluster fomos percebendo que impulsionar toda a área em conjunto era difícil. Somos 155 associados. Resolvemos segmentar as áreas. Pareceu-nos que as neurociências e a oncologia eram as áreas em que podíamos constituir os chamados “subclusters”.

Que procedimentos concretos poderão ser bons para atrair os estrangeiros?
Artroplastia da anca e do joelho são coisas que se fazem em Portugal com grande qualidade, sucesso e a preços muito razoáveis. Tal como a angioplastia coronária, a cirurgia das cataratas, a colecistectomia, hérnia inguinal… Identificámos uma dúzia de mercados, como Alemanha, Espanha, França, EUA, Angola e Moçambique. Podemos ter planos atraentes para o doente e familiares que os acompanham. Juntamos a qualidade ao acesso gratuito ao sol e ao país tranquilo que somos.

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