Conservadores turcos pedem ilegalização do partido curdo no Parlamento

Repetem-se as acusações de que Ancara quer ocultar agenda interna na luta "sem distinção" a jihadistas e separatistas. Governo turco pediu reunião da NATO para explicar ofensiva.

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Manifestações pela paz em Istambul, onde um polícia foi morto Ozan Kose / AFP

Os dois partidos conservadores no Parlamento turco exigiram neste domingo a ilegalização do partido secularista pró-curdo HDP, o Partido Democrático do Povo, por estar alegadamente ligado a “organizações terroristas”. Os apelos partem do AKP, do Presidente Recep Tayyip Erdogan, mas também do partido nacionalista encarado como um possível parceiro de coligação, agora que caiu por terra o cessar-fogo com separatistas curdos.

Devlet Bahçeli, do MHP, nacionalista, apelou informalmente ao gabinete do procurador do Supremo Tribunal de Recursos que “use a lei contra os políticos (…) que elogiam terroristas”. Já o vice-presidente do AKP, Mustafa Sentop, falou abertamente de uma possível ilegalização do partido pró-curdo. “Podemos fechar o HDP”, disse numa entrevista neste domingo. “Estão claramente a apelar ao terrorismo e à violência.” 

Passados meses de imobilismo face ao conflito na Síria, a Turquia parece usar agora a cobertura de uma nova guerra “sem distinção” entre separatistas curdos e combatentes do autoproclamado Estado Islâmico (EI) para marcar passo com a sua agenda interna. Ancara convocou uma reunião para terça-feira com os parceiros da NATO para apresentar a sua nova ofensiva. À mesa estarão também os membros da coligação liderada pelos Estados Unidos que apelaram repetidamente a que o exército turco entrasse no combate contra os extremistas.

Fá-lo apenas agora. O regime de Assad, cada vez mais debilitado, foi no passado um dos principais apoiantes das milícias curdas. Agora um dos principais agentes na batalha contra os jihadistas, os curdos sírios ameaçam Ancara com uma cintura de territórios conquistados a Sul da sua fronteira que podem, no futuro, funcionar como o bastião de um estado autónomo desta minoria.

Essa ameaça tornou-se evidente e a pressão internacional para que Ancara se juntasse ao combate aos jihadistas acabou por vencer. “A Turquia evitou entrar num confronto aberto contra o EI e outros grupos armados que transitavam no seu território para exercer pressão indirecta no regime sírio e nos sírios curdos das YPG [Unidades de Protecção do Povo]”, escreve o analista sírio Christopher Kozak, no think-tank Institute for the Study of War. Ancara entra agora no conflito “para assegurar que a campanha da coligação evolui na medida dos próprios interesses estratégicos da Turquia”.

O HDP e outros partidos pró-curdos tentam agora usar o tom anti-curdo nas acusações ao Governo, que, dizem, está a usar o clima de guerra para tentar obter uma nova maioria absoluta se tiverem de se realizar eleições, uma vez que das legislativas de Junho ainda não saiu uma coligação de governo. “O AKP, transformado num gabinete de guerra, criou esta crise de segurança propositadamente para se servir do papel de salvador e prosseguir o seu governo”, lê-se no portal Kurdish Question. 

Restam poucas dúvidas de que a guerra aberta de Ancara contra jihadistas e separatistas tem nos curdos o seu inimigo preponderante. As duas mega-operações policiais de sexta e sábado atingiram esmagadoramente a minoria curda e em muito menor grau suspeitos de ligações ao Estado Islâmico. Dos quase 600 detidos em dois dias, apenas 28 eram possíveis extremistas islâmicos, escreve o Hürriyet.

Neste domingo, a polícia turca atingiu unicamente alvos do ilegalizado Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Foram detidas 21 pessoas na província de Diyarbakir, onde um carro-bomba explodiu junto a um comboio militar turco e matou dois soldados. Ancara culpa o braço armado do PKK, que cancelou a trégua que durava há dois anos com o Governo turco em resposta às prisões e ofensivas do exército.  

Nas redes sociais, membros do HDP repetiam acusações de que militantes do seu partido haviam sido injustamente capturados pelas autoridades turcas. Isto à medida que centenas de pessoas se manifestavam em Ancara e Istambul contra a ofensiva do Governo aos separatistas do PKK e prisão de responsáveis da minoria curda, lançando pedras contra canhões de água e gás lacrimogéneo. Um polícia foi morto em Istambul. 

Prudência no Ocidente
A intenção da Turquia em atingir acima de tudo os separatistas curdos tornou-se de tal forma evidente que fez com que a Alemanha entrasse em jogo. A notícia foi avançada pelo gabinete de Angela Merkel, que revelou um telefonema entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro turco. Apesar de apoiar a batalha contra os rebeldes curdos do PKK, Berlim relembra o “princípio da proporcionalidade” entre extremistas islâmicos e separatistas e pede que o Governo turco “não desista” das negociações de paz com os curdos “apesar de todas as dificuldades”.

É o mesmo tom que é utilizado pela Casa Branca, que há muito tem o PKK na lista de grupos terroristas, à semelhança da União Europeia. Nas palavras de Ben Rhodes, vice-conselheiro para a Segurança Nacional de Barack Obama, a Turquia tem o “direito de agir contra células terroristas”, mas o mais importante é a batalha contra o autoproclamado Estado Islâmico. Nesse campo, Rhodes divide implicitamente o PKK das restantes milícias curdas no Iraque e Síria, com quem os EUA mantêm uma forte aliança regional. “Encorajamos os nossos diferentes parceiros nessa luta a trabalhar em conjunto”, afirmou.

Washington não quer hipotecar a aliança que tem com os curdos sírios, o seu parceiro mais eficaz no terreno contra os jihadistas, embora Ancara os tenha como uma ameaça grave. Por isso, os norte-americanos preferem sublinhar o novo entendimento com Ancara na luta contra os jihadistas e afastar-se da questão curda. “Não existe ligação entre os bombardeamentos contra o PKK e o acordo recente para reforçar a aliança da Turquia e Estados Unidos na luta contra o ISIL [EI]”, escreveu este domingo no Twitter Brett McGurk, o diplomata norte-americano no Médio Oriente para a coligação contra os jihadistas.  

A causa curda tem várias dimensões e não se limita ao braço armado do PKK. Defender ataques contra o partido ilegalizado, de inspiração marxista e que tem perdido apoio desde o final dos anos 90, não é atacar directamente as reivindicações de autonomia da população curda. Cem Emrence, especialista no conflito de três décadas entre Turquia e separatistas curdos, explicou recentemente ao jornal turco Hürriyet que o HDP é agora a força central para a reivindicação da minoria curda. “Um cenário possível [para o futuro] é que o partido da minoria étnica, o HDP, continue a tornar-se cada vez mais central para o movimento curdo do que o PKK.”

O HDP, ao contrário do PKK, tem bases de apoio na população turca e não apenas curda, o que o torna uma ameaça mais credível para o partido do Presidente Erdogan, o AKP. As recentes decisões de Ancara de não proteger a comunidade curda – levadas ao extremo na inacção ante a guerra em Kobane – e de se recusar a aprovar reformas de integração da minoria podem, contudo, funcionar contra as intenções do AKP.

“Com o fim do processo de paz [com os separatistas], e dado o falhanço do último Governo do AKP em estabelecer todos os direitos culturais à comunidade, os curdos na Turquia podem unir-se quase unanimemente na desilusão contra o Estado turco”, escreve Claire Sadar para o think-tank Muftah.

Mas as divisões entre turcos preservam-se e a paz entre as várias tendências pode estar agora em causa. “[A comunidade curda] está longe de estar unida em torno de uma causa ou ideologia. O reacender das hostilidades entre o Estado turco e o PKK servirá apenas para exacerbar estas divisões e despertar mais violência dentro da comunidade.”

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