A juventude enquanto tempestade

Um filme sempre na contradição entre uma leitura “simbólica”, e pormenores, reais, vivos, que vêm interromper o desfile da simbologia

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Um filme desequilibrado e frequentemente exasperante mas que, como se costuma dizer, tem “qualquer coisa”

É o primeiro filme da japonesa Naomi Kawase, há algum tempo uma habituée do circuito dos festivais internacionais, a estrear em Portugal.

Nota-se, talvez excessivamente, que Kawase filma a pensar numa audiência global, a tal ponto o Japão do seu filme vive à beira de um exotismo calculado e até – tudo o que tem a ver com a filosofia e a religiosidade ancestrais – sobre-explicado ou pelo menos sobre-verbalizado, duma maneira mais pitoresca, mais turística, do que verdadeiramente sentida e orgânica. Apesar de tudo, e se a aposta distintiva do filme é esse olhar sobre algo que vem do “fundo” do Japão cruzado com a sociedade moderna (de resto, um tema perene do cinema do japonês, de ontem e de hoje), A Quietude da Água mostra uma cineasta com talento suficiente para não ser reduzida à “Mira Nair japonesa”.

É basicamente uma história de crescimento e passagem, e no seu centro está um par de semi-namorados, cada um com os seus problemas. A miúda tem a mãe a morrer, o miúdo tem os pais separados, e o núcleo do filme acompanha uma dupla aprendizagem: o entendimento da morte e da separação, mas também o entendimento da atracção (os primeiros sentimentos sexuais) entre eles.

A força do filme está essencialmente nisto, e na presença do par adolescente, de uma delicadeza que também conserva alguma coisa em bruto. Kawase envolve-os na natureza, a natureza de uma pequena ilha habitada por camponeses e pescadores, animais e vegetação – e se por vezes se sente que o lado “paisagístico” do filme é forçado, que os seus longos planos “vazios” sobre o mar ou sobre o bosque são mais um artifício do que outra coisa, há na integração dos miúdos nessa natureza uma espontaneidade, mesmo uma naturalidade, que acaba por ser convincente. Por outro lado, se Kawase usa e abusa dos elementos folclóricos (as canções e as cerimónias musicais de preparação para a morte da mãe da miúda, por exemplo) eles ganham pleno sentido quando a vida, a imperfeição, toma conta deles (e a miúda se engana durante a execução musical de uma canção).

O filme está sempre nesta contradição entre o que parece artificioso e “programado”, em excesso de abertura a uma leitura “simbólica”, e pequenos pormenores, muito reais, muito vivos, que vêm interromper o desfile da simbologia. E embora seja com ela que o filme termina (os miúdos e a “quietude da água”) antes disso há a melhor sequência do filme, que resolve muito bem a confluência do clima narrativo com o clima meteorológico – uma noite de tempestade e vendaval, que abre para um dia de onde todos emergem pacificados. De certa forma, é também essa sequência que nos pacifica, espectadores, com um filme desequilibrado e frequentemente exasperante mas que, como se costuma dizer, tem “qualquer coisa”.

 

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