“O cinema é mundano, por trás dele está a vaidade”

Entrevista originalmente publicada a 29 de Novembro de 2004

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Manoel de Oliveira, realizador de cinema, cidadão do mundo David Clifford

No intervalo de nova série de homenagens em diferentes países, e entre a estreia nacional do seu último filme e o início da rodagem do próximo, Manoel de Oliveira, 95 anos, o mais velho realizador em actividade em todo o mundo, comenta momentos da sua vida e obra: o “conflito artístico” que mantém com Agustina, as “razões particulares” da separação de Paulo Branco e o optimismo com que finalmente encara a possibilidade de acordo com a Câmara do Porto sobre o futuro da Casa do Cinema Manoel de Oliveira.

Chegou recentemente da Cidade do México, de São Paulo e de Santiago de Compostela, onde foi alvo de homenagens. Antes de partir para nova viagem, para a Polónia – onde este fim-de-semana viu a sua obra também celebrada na cidade de Lodz –, aceitou fazer uma rápida deslocação do Porto a Lisboa (ida-e-volta, de táxi) para participar no programa Diga Lá Excelência, da Rádio Renascença, em colaboração com o PÚBLICO e transmissão aos domingos à noite no Canal 2 da RTP. É Manoel de Oliveira, 95 anos – fará 96 a 11 de Dezembro –, realizador de cinema, cidadão do mundo. Sempre em trânsito pelo mundo. E sempre a fazer filmes. O último, O Quinto Império, teve estreia mundial no Festival de Veneza e deverá chegar às salas portuguesas no início de 2005. O próximo está já na calha: a adaptação dum novo romance de Agustina Bessa-Luís, A Alma dos Ricos, e que o realizador intitulou O Espelho Mágico. Mais um diferendo criativo com a sua amiga de há tantos anos.

Sempre que nós, jornalistas, escrevemos sobre o Manoel de Oliveira somos levados a lembrar a idade, e que, aos 95 anos, é o mais velho cineasta em actividade em todo o mundo! Como vive esta situação?

Vivo muito bem, concerteza. Se eu não tivesse atingido esta idade não apanhava esta quantidade de prémios que me começaram a dar agora, no final da vida.

Começou por fazer Douro, Faina Fluvial [1931], que na versão original era mudo. Depois veio o som, a cor... Mas há quem diga, hoje, que o cinema está acabado. Concorda?

Creio que não, porque não há outra forma de arte que se aproxime mais da vida do que o cinema. E o cinema é também uma síntese de todas as artes – como a própria vida, que contém em si todos os aspectos –, seja a escultura, a pintura ou a própria música.

A certa altura dizia-se que a ópera era a arte mais completa, porque tinha o teatro, a música, a história…

O cinema suplantou-a, porque tem a mesma coisa, mas de um modo fantástico, quer dizer, imaterial. O cinema é imaterial, o teatro é material: os actores têm carne e osso, estão lá, vivos, nos cenários. Mas o cinema, não – é um fantasma da realidade.

Como vê a situação do cinema nesta viragem de século, com todas estas novas tecnologias – os sistemas de “cinema em casa”, por exemplo –, em que o cinema já não é, como era, o espectáculo da sala escura.

Mas o cinema continua a ser o espectáculo da sala escura. Pode é fazê-lo de uma maneira ou de outra. E a própria vida é já um teatro. Da vida vem o teatro e do teatro vem o cinema. Mas na vida já se representa.

Mas a televisão actual, nomeadamente com os reality-shows, tenta reproduzir aquilo que supostamente é a própria vida.

Sim. Mas a televisão é diferente. A televisão é pública e o cinema é cativo, privado. A televisão pode passar o cinema ou uma peça de teatro, mas a sua função é pública, é mostrar os acontecimentos que correm, como um jornal, quase.

E as telenovelas? Não acha que as pessoas habituadas à facilidade da linguagem das telenovelas se desabituam do cinema. E quando vão ver um filme seu, acham que é lento. Porque estão habituadas a um ritmo muito superficial?

O [arquitecto Álvaro] Siza disse um dia – foi simpático – que para fazer um projecto era preciso tempo e pensar, como os filmes de Manoel de Oliveira. As telenovelas são muito ricas, muito bonitas, e eu gosto da diversidade. Não sou nada contra o filme comercial. A gente dos filmes comerciais é que é sempre contra o cinema como arte. Mas eu não. Sou apologista da variedade, mesmo no cinema artístico. Penso que a personalidade do realizador é que é a marca da originalidade. Não há outra.

Mas o cinema que o Manoel de Oliveira faz tem já uma marca, que se tem mesmo afirmado como uma certa marca do cinema português.

Eu não sou representante do cinema português. O cinema português é um conjunto de realizadores, e da soma deles – dos bons, claro – é que se retirará um efeito como o da literatura ou da pintura.

E como é que faz essa distinção entre os bons e os maus realizadores?

O Rembrandt apresentou à sociedade o seu quadro
A Ronda Nocturna e foi muito mal recebido. Detestaram-no. Ele ficou muito triste. Fez uma reflexão e junto dos seus alunos comentou e perguntou: “O militar tem o seu sucesso na vitória, o comerciante tem o seu sucesso nos lucros, mas o artista, onde é que ele vai buscar o seu sucesso?” É uma pergunta que não tem resposta. A arte, ou se gosta ou não se gosta, ou se entende ou não entende. Mas, de facto, há uma afirmação daquilo que é bom e daquilo que é mau através do tempo. É aquilo que resiste ao tempo.

O seu próximo filme será O Espelho Mágico – A Alma dos Ricos, em que regressa à obra de Agustina Bessa-Luís. Mas este projecto era anterior a O Quinto Império, feito a partir duma peça de José Régio, El-Rei Sebastião. Porque é que houve esta troca?

Isso é um bocado complicado de explicar. Mas a troca foi porque eu mudei o título e pus
O Espelho Mágico. Fi-lo porque eu tenho uma maneira de ver o cinema, e penso que o cinema não pode filmar nem memórias, nem sonhos, nem pensamentos. Como o filme tinha um flash-back em que aparecem duas primas em pequenas: elas estão no quarto, sentadas na cama, e há um armário que tem um espelho grande, e então fez-se reflectir isso no espelho. Daí o título O Espelho Mágico. Mas ela [Agustina] não gostou. E porque alterei algumas coisas do livro… A filmagem, a passagem de um livro ao cinema não é a mesma coisa.

Na sua relação com Agustina, têm-se sucedido os episódios de livros que adapta ao cinema em filmes de que Agustina não gosta. Mas, passado pouco tempo, estão de novo a trabalhar em conjunto…

Ela gosta de não gostar, e eu gosto que ela não goste (risos). A relação é esta. Este conflito é eterno, mas não briga nada com a nossa amizade, que é intocável, e não tem nada a ver com isso. É um conflito artístico. Eu não posso filmar o livro. Ela quer que eu filme o livro. Mas é impossível. Não pode ser, nem deve.

Mas, no Amor de Perdição, há uma fidelidade ao texto original de Camilo que não se repetiu noutros filmes seus.

Tal e qual não. Sou fiel a Camilo, concerteza. Como sou à Agustina – não digo fiel ao texto, mas ao contexto… e ao texto. Às duas coisas. Como realizador, estou preso ao contexto. Posso fazer tudo o que quiser, mas sempre dentro do contexto. E do contexto dos filmes da Agustina eu nunca saí. Como do Régio ou do Camilo, também nunca saí. Esse é o meu respeito pelos autores, que é muito forte. Mas eu faço cinema, não faço literatura.

Os seus primeiros filmes têm sempre uma relação com o Porto e com o rio: Douro, Faina Fluvial, Aniki-Bobó [1942], O Pintor e a Cidade [1956]… O Douro está lá sempre.

O Porto tem um porto natural, que é o rio Douro. Daí saíram as embarcações para todo o mundo. Vinham cargas, de bacalhau, de carvão... E havia até secções: as casas dos carvoeiros, dos bacalhoeiros. Era ali o centro… Gosto do Porto, pelo rio, que é uma porta para todo o mundo. E Portugal é o país mais universalista do mundo. Os portugueses têm esse dom; se não o tivessem, não teriam feito os Descobrimentos. Quando estou agarrado ao Porto, é o porto de mar: para sair e entrar, dar e receber.

Mas a situação actual da Europa e do Mundo parece criar-lhe alguma ansiedade. Isso vê-se em Um Filme Falado [2003] e, penso também, em O Quinto Império, que ainda não vimos. Como vê o mundo actual?

Isso está expresso em
O Quinto Império – Ontem como Hoje. Hoje quer-se fazer a globalização, mas de quê? Fazer tudo por igual? Juntar tudo: um só rei, um só Papa, como nas palavras do Padre António Vieira. Há esse desejo utópico. Mas é difícil chegar lá. Perdem-se pelo caminho, tem-se hesitações e há um retorno à Idade Média, em inverso. Agora são os árabes a quererem destruir o mundo ocidental.

A propósito do islão e da religião. Mantém com a religião e com a fé cristã a mesma relação muito atormentada que tinha, por exemplo, o José Régio? Isso ressalta em alguns dos seus filmes.

Sim. O Régio tinha esse desejo de um sinal de Deus. Ele foi educado religiosamente. Mas depois de ter lido bem a Bíblia encontrou lá certas contrariedades que lhe puseram dúvidas sobre dúvidas. De resto: duvido, penso, logo existo (risos).

Revê-se nessa atitude?

Um pouco. Mas sou crente e tenho fé. Mas, ao mesmo tempo, sou abordado por um certo pessimismo e frequentemente me lembro de um provérbio russo que diz: o pessimismo é a conclusão do optimista.

E o cinema que faz reforça-lhe esse pessimismo ou ajuda-o a lutar contra ele. O Manoel disse um dia que o cinema não leva à santidade.

Não, porque o cinema é mundano. E a santidade é a fuga do mundano. É o desprendimento – o sentimento de liberdade mais profundo – de tudo quanto é mundano, da vida, das atracções. É separar-se de tudo. Por trás do cinema e do autor está a vaidade. Basta isso para destruir tudo. Ele faz isto – gosta de receber prémios, de receber elogios, que compreendam os seus filmes. E isso é mundano – é deste mundo –, a santidade não é deste mundo.

Isso significa que reage mal quando criticam os seus filmes e não gostam deles.

Não. Pelo contrário, estimulam-me. Porque vejo que eles não têm razão. Quando vejo que as críticas tocam, põem o dedo na ferida, eu admito: “Realmente têm razão”. Mas quando dizem mal por dizer mal, para não serem simpáticos…

Só começou a fazer filmes com frequência a partir dos anos 70, já com sessenta e tal anos. Até aí fez muito poucos. Foi mais por razões políticas ou económicas?

Era por razões económicas que sucediam a razões políticas. Eu mandava sempre projectos para o SNI [Secretariado Nacional da Informação, organismo do Estado Novo que geria os subsídios], mas nunca me davam nada. O único subsídio que me deram foi para
O Acto da Primavera [1962], que era um filme sobre Cristo e, portanto, não tinham medo. Não queriam que eu fizesse filmes. Eu era considerado o “inimigo nº 1” no cinema.

Porquê?

Porque não era comunista. A eles convinha-lhes o comunismo, porque o comunismo justificava a ditadura. Eles acusavam-me de ser comunista, mas eu não era. Fui simpatizante com as ideias comunistas. Mas isso era se elas se realizassem. Mas o que aconteceu foi o contrário.

O que é que o fez desacreditar no comunismo?

Foram as atitudes do Estaline.

Faz actualmente um filme por ano, o que é uma situação rara, não só em Portugal mas em todo o mundo.

Não. Na América eles fazem dois, ou três, ou quatro por ano – o [John] Ford fazia dois, três por ano e, no final, somava 400 filmes. Eu tenho trinta e poucos (risos).

Esse seu ritmo corresponde…

… a uma necessidade fortíssima. Eu faço um, por não poder fazer dois, se não, faria dois por ano.

Tem também um estatuto de excepção no cinema português. Nenhum outro cineasta tem essas condições

.Cada um é como é. Cada um faz o que pode. Não podemos generalizar.

Concorda com o actual sistema de subsídios ao cinema pelo Estado?

Absolutamente. Na antiga Grécia o Governo pagava aos dramaturgos para escreverem as peças, pagava aos actores para as representar e pagava ao público para as ir ver. Porque era uma instrução, um conhecimento. A peça era representada uma vez só – ficava caro –, mas aquilo espalhava-se, porque os que assistiam falavam depois aos outros, aos amigos e familiares, e aquilo alargava-se. Era uma maneira de introduzir uma educação superior.

Nas últimas duas décadas fez muitos filmes com o produtor Paulo Branco, mas agora deixou de trabalhar com ele. Isso não irá prejudicar a sua produtividade?

Acho que não. Não tem nada uma coisa com a outra. Eu fiz filmes com vários… E já fui produtor dos meus filmes. Com o Paulo, que é um grande produtor, foi um período bastante produtivo, não há dúvida. Mas ele tem muita gente para fazer filmes, e dá aos novos – e isso é simpático. Mas há razões que me obrigam a tomar outras decisões.

Quais são essa razões?

As razões são particulares (risos). Eu não quero entrar por esse campo. Também fiz filmes com o [António] Lopes Ribeiro. Ele sempre escondeu que eu era co-produtor do
Aniki-Bobó. E fui co-produtor, em pequena escala, do Amor de Perdição, que não teria sido acabado se eu não insistisse. Fui eu que o acabei com um subsídio da Gulbenkian, que me foi dado a mim pessoalmente.

Ter deixado de trabalhar com Paulo Branco não lhe retira a hipótese de continuar a filmar com grandes actores, como Catherine Deneuve, Michel Piccoli ou John Malkovich?

O Piccoli está morto por fazer um filme comigo. E eu morto por fazer um filme com ele, e com a Catherine. E não creio que o Paulo possa impedir a esses artistas de continuarem a sua carreira. Não é por mim. É por eles.

Continua por assinar o protocolo para a Casa Manoel de Oliveira. O edifício está construído. Por que é que a negociação está a demorar tanto tempo?

Em princípio, eles acusam-me a mim. Mas eu estou inocente. Eu dou o acervo, mas em determinadas condições. Essas têm sido esquecidas e, por isso, tem demorado. Mas agora o presidente da Câmara está em boa disposição de levar a cabo, e eu tenho um advogado que está a fazer o contrato. Dentro de uma semana será apresentado à Câmara. E com vantagem, para mim, concerteza, mas também para a cidade, porque eu quero uma coisa viva que beneficie a própria cidade. Vamos lá ver.

Como é que vê o meio intelectual portuense actual, por comparação com o que conheceu há 40, 50 anos. Acha-o ainda estimulante?

Há artistas muito fortes no Porto, em todos os ramos. E há um movimento também forte, com revistas e jornais, que estão atentos às coisas do passado, às memórias...

Mas o Porto não tem perdido algum poder reivindicativo, do ponto de vista também político, perante Lisboa?

Sim. Lisboa absorve tudo. Não perdoa nem gosta do Norte. Lembro-me de um rali a que fomos, um dia, onde estava o conde Monte Real, o Herédia e outros. Parámos, a certa altura, nas Pedras Salgadas, no Hotel Avelames. Estávamos a conversar e eles diziam: “Lá em Portugal”, que era Lisboa (risos).

Tem agora um familiar, o seu neto Ricardo Trepa, também no mundo do cinema. Isso dá-lhe prazer.

Dá prazer, como dá qualquer outro actor. Dá-me prazer sendo meu neto. Ele é um actor excelente. Faz um papel extraordinário n’“O Quinto Império”: um D. Sebastião doente, sofredor e obcecado.

Um dos seus projectos é adaptar O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. O que é que o motiva nessa figura?

É o pecado.

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