Cometas

Um reformado turco que vive na Alemanha e o seu filho professor universitário em Hamburgo. Uma prostituta turca em Bremen que se finge balconista de uma sapataria para que a filha universitária que ficou na Turquia não saiba o que a mãe tem de fazer para a sustentar, só que a filha universitária tornou-se activista política sem a mãe saber. Uma estudante alemã de espírito (e amor) livre e a sua mãe aberta mas mais convencional.

Posto desta maneira, o que se esperará de "Do Outro Lado" será um panfleto em forma de mosaico-"Magnolia" sobre fronteiras, choques culturais, questões de identidade, globalização, política, sociedade.Tirem, então, desde já o cavalinho da chuva, porque não é nada disso. Ou antes: é um pouco disso, mas bastante pouco. Claro que sim, há política, há sociedade, há identidade, há fronteira, há globalização a trabalhar ao longo do filme de Fatih Akin. Mas a essência de "Do Outro Lado" está muito menos nas nacionalidades do que nas universalidades: mais do que questionar posições ou atitudes, Akin conta uma história, ou antes, três histórias que se reflectem e se iluminam mutuamente sem nunca se cruzarem realmente para lá da mera coincidência.

O filme começase a ganhar aí, nessa aparente submissão à mecânica do filmemosaico para logo a seguir a desarmar com uma elegância extraordinária que, ao mesmo tempo, evita olhar para os lugarescomuns da mesma maneira de sempre: estes três pares de pais e filhos, mães e filhas, não se cruzam apenas porque seria conveniente à estrutura narrativa, e podem gravitar naturalmente em direcção uns aos outros, mas nunca passam de cometas em órbita fugaz que usam essa gravidade para reembalarem no seu trajecto.

Depois, "Do Outro Lado" torna-se numa peculiar abordagem do velho "conflito de gerações" que estão mais próximas umas das outras do que pensam, gente que compreende à custa da sua própria experiência o que "ser filho/a de" ou "ser pai/mãe de" quer dizer, gente que se chega perigosamente perto do fim de tudo e aí encontra a energia para recomeçar.

Flutuando em animação suspensa entre a Alemanha e a Turquia, sempre "em viagem" por entre comboios, aeroportos, (auto- )estradas, "Do Outro Lado" está permanentemente em movimento; e esse movimento visível, físico, traduz-se igualmente no próprio movimento interno das personagens, sempre divididas entre assumir e renegar (um passado, um presente), entre aceitar e recusar (uma atitude, uma decisão), entre a fúria de viver de quem ainda acredita e o cansaço vacinado de quem já não tem ilusões.

Akin, percebe-se, não quer que este filme dividido, ele também, entre duas margens de um mesmo mundo, impecável jogo de espelhos elegantemente construído onde cada personagem tem o seu duplo/ reflexo "do outro lado" (a Alemanha e a Turquia, a vida e a morte, o passado e o futuro), seja "apenas" político ou "apenas" social. Ele quer é que este seja um filme sobre gente, e que tudo decorra daí. E é isso que ele faz, de modo pontualmente convencional mas sempre sincero - e a sinceridade desarmante, a exposição pessoal, é algo que nem sempre resulta no grande écrã. Aqui, não só resulta como transporta o que é, no seu centro, uma história de luto e perda, transformada através destas personagens numa celebração da vida; numa oportunidade de recomeçar e de descobrir aquilo que nos faz mexer."Do Outro Lado" é um dos grandes filmes que vimos cá em 2008, para guardar bem juntinho ao lado de "Wall-E", "O Segredo de um Cuscus" e "Gomorra". Falhá-lo não é uma opção.

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