Familias felizes

Os fundamentalistas andam a bradar aos céus que foram traídos por David Cronenberg. Como é possível?, perguntam eles. Como é possível que um dos mais sistematicamente estimulantes cineastas contemporâneos digne aceitar filmar guiões indignos do seu talento e andar a fazer tangentes ao "mainstream" que pouco adiantam a uma das obras mais consistentes do cinema recente?

Já se sentia esse desconforto nas reacções a "Uma História de Violência" (2005) e o novo "Promessas Perigosas" parece exacerbá-las. E, contudo, são dois filmes que fazem o mesmo que Cronenberg fez durante anos: pegar num género e apropriar-se dele à sua maneira. Onde durante anos Cronenberg foi identificado como um cineasta do fantástico, do corpo mutante, "Promessas Perigosas" confirma que o seu olhar entomologista se desviou do corpo para a alma, da mutação física para a balcanização mental, sob a capa de um filme policial com o seu quê de tópico.

E se é perfeitamente verdadeiro dizer que este não é uma das obras-primas do realizador canadiano, em grande parte devido à estrutura (propositadamente) convencional do argumento de Steve Wright, a verdade é que é precisamente no olhar levemente desviado que Cronenberg aplica a essas convenções que está toda a sedução e todo o desconforto do que, no fundo, é um filme de um romantismo fora de moda.

Porque, sim, é verdade, "Promessas Perigosas" é um grande "film noir" hiper-romântico, na impossibilidade do romance que lhe serve de centro de gravidade, dos sacrifícios que rodeiam a sua tragédia quase-grega de família e poder. O romance impossível é entre Nikolai, homem de mão da mafia russa em Londres, e Anna, parteira de hospital que perdeu o filho e procura localizar a família de uma adolescente que morreu a dar à luz, para lhes entregar a bebé órfã à qual se começou a afeiçoar. A tragédia quase-grega envolve Nikolai, o poderoso Semyon, dono do restaurante e padrinho mafioso, e o seu filho Kirill, volátil e estouvado, títere no meio de um jogo de poder que a presença de Anna, verdadeiro "pauzinho na engrenagem", vem acelerar.

O romance entre Nikolai e Anna é apenas esboçado num filme onde o que interessa é também uma certa noção fatalista de como os pecados dos pais parecem condenar os destinos dos filhos, e como há quem queira quebrar esse círculo vicioso e sonhe com outros e melhores futuros para quem vier a seguir. Já não há corpos mutantes em Cronenberg (até as tatuagens que identificam os mafiosos podem mentir, parece dizer o filme), os monstros estão cada vez mais à superfície e a sua monstruosidade é cada vez mais ambígua e menos linear. Aqui, numa Londres escura, suja, filmada como um corpo estranho com uma segurança assombrosa, eles são Viggo Mortensen (a invocar o espírito de Kirk Douglas) e Armin Mueller-Stahl em duas interpretações impressionantes, de cortar à faca, que cristalizam nas suas personagens o tal sacrifício em nome de um futuro melhor, uma certa abnegação resignada (e, dir-seia, muito eslava) que protege as suas dúvidas.

Joga bem com o lado "milagre de Natal" do filme, subversão peculiar das tradicionais histórias crísticas, com aquele humor seco e negro que às vezes julgamos reconhecer em Cronenberg - mas nada de ilusões, o realizador canadiano continua a inquietar-nos como ninguém. "Promessas Perigosas" pode ser um filme romântico, mas de um romantismo resignado, temperado pelo pragmatismo de quem sabe que o mundo é feio e os milagres não acontecem. A não ser que...

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