A dúvida metódica

Uma das definições possíveis da magia é fazer-nos acreditar naquilo que não é real, levar-nos a suspender a nossa descrença "enganando" a visão que é o mais "palpável" (passe o paradoxo) dos nossos cinco sentidos.

Face a uma ilusão perfeita, o "ver para crer" de S. Tomé prova-se tão falível como todos os outros - e é nesse limbo de falibilidade que Neil Burger instala a dúvida metódica que estrutura a sua segunda longa-metragem, adaptando um conto de Steven Millhouser. O seu herói é um ilusionista de poderes aparentemente insondáveis, que alguns dizem ser artista mais que mero prestidigitador circense, que começa como mero "entertainer" da sociedade refinada da Viena de fim do século XIX - mas que acabará por se ver dramaticamente envolvido na política da sucessão ao trono austro-húngaro, quando redescobre a sua paixão de adolescência na noiva do príncipe herdeiro.

As ilusões de Eisenheim são de tal modo perfeitas (e quase claramente impossíveis com a tecnologia oitocentista) que Burger levanta a lebre desde o início: o que é real e o que é ilusório, onde começa a verdade e termina a mentira? O nosso guia pelo território minado é o inspector-chefe Uhl da polícia vienense, homem dividido entre a fidelidade à monarquia e a certeza de que nunca passará de mero funcionário descartado assim que já não fizer falta; alguém que, como o espectador, se pergunta como é que a ilusão é feita, porque o seu emprego consiste precisamente em dissecar a aparência até apenas restar o facto real evidente, descobrir, no fundo, "como se faz". Mas Eisenheim é um desafio, tal a perfeição das suas ilusões. E Uhl descobrirá que, apesar de avisar repetidamente o ilusionista de que o reacender do seu "affaire" com a duquesa von Teschen o pode meter numa grande carga de trabalhos, quem está numa grande carga de trabalhos é mesmo ele próprio - porque a sua consciência vai ter de escolher entre dois deveres.

Claro que os mágicos não revelam os seus segredos pessoais - e Burger, elegantemente, elide o "como" de muitas das ilusões de Eisenheim. É, aliás, esse o seu grande trunfo: o modo como consegue criar e segurar a requintada atmosfera de mistério, a aura literalmente de magia que percorre todo o filme, apoiada numa impecável reconstituição de época (rodada em Praga) e na extraordinária fotografia de Dick Pope. Ainda por cima, a sua realização valoriza o trabalho exemplar de contenção e subtileza de dois actores notáveis que se defrontam com lealdade e admiração mútua: o demasiado raro Edward Norton e o cada vez maior Paul Giamatti (em ano grande depois da sua prestação ser dos poucos salvados do decepcionante "A Senhora da Água").

É, por isso, pena que Burger não resista a jogar sujo aqui e ali (algumas elipses levantam uma certa sensação de "má fé") e que tombe no truque "déjà vu" da revelação súbita da natureza ilusória da realidade nos últimos minutos - minimizando não apenas as excelentes interpretações de Norton e Giamatti como a própria elegância com que soube manter o ambiente do filme. São descuidos que não destroem nada do que ficou para trás; mas é desagradável ver um filme que se comporta inteligentemente durante toda a sua duração decidir pelo final que já basta de inteligência por uma noite.

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