A cadeira é uma arma

"Murderball - Espírito de Combate" é um documentário sobre tetraplégicos que jogam "quad rugby" - um desporto paralímpico cuja única diferença do râguebi normal (ou mesmo do futebol americano) é ser jogado em cadeira de rodas sem protecções (e, no "quad rugby", a cadeira de rodas é uma arma, acreditem). Porque, no resto, os atletas são tão latagões musculados e competitivos como os do râguebi normal. Estavam à espera de um documentário lacrimejante, compreensivo e bem-intencionado? Esqueçam, não é "Murderball". E se, depois de o verem, continuarem a sentir aquela tão portuguesinha compaixão piedosa e diminutiva pelos coitadinhos dos aleijadinhos, então não perceberam mesmo nada do filme, e estarão a dar razão a uma das figuras que o documentário segue, um antigo jogador de primeira água da equipa oficial americana que diz que em Portugal ter uma deficiência significa não se ir a lado nenhum.

Chama-se Joe Soares, é filho de portugueses, emigrou criança para a América, ficou tetraplégico com poliomielite aos nove anos. Nos EUA, tornou-se num jogador fulcral para a ascensão da equipa americana de "quad rugby" ao primeiro lugar do "ranking" mundial e, depois de afastado por motivos de idade, foi treinar a equipa canadiana que se tornou num sério competidor dos americanos. Teria seguido esse mesmo percurso em Portugal?

"Murderball" segue o ano de preparação (e as rivalidades) das equipas americana e canadiana, com vista aos jogos paralímpicos de Atenas em 2004, concentrando-se em Soares do lado canadiano e em Mark Zupan, um dos jogadores americanos de ponta - ainda por cima, os dois não se gramam mesmo nada. E contrapõe-lhes Keith, um jovem motard que ficou tetraplégico num acidente de motocross, à beira de sair do hospital após dez meses de reabilitação, a enfrentar o mundo pela primeira vez numa cadeira de rodas.

Sim, "Murderball" é um documentário inspiracional (é o seu lado menos interessante). Mas não escamoteia - e isto é importante - que os seus "heróis" são tudo menos aleijadinhos, são tudo menos coitadinhos, são tudo menos desgraçadinhos. São gente que resiste a ser enfiada na gaveta inspiracional, são seres humanos com cicatrizes fundas e um lado escuro ali à mostra. Um colega de escola de Mark Zupan (torso tatuado de atleta radical, barbicha ruiva, olhar intenso) diz que o jogador já era um cretino insuportável antes do acidente de automóvel que o deixou numa cadeira de rodas - e, depois, não deixou de o ser. E a namorada não hesita em defini-lo como "jock" (sim, esses mesmos machos alfa atléticos que aterrorizam os pátios dos liceus). Soares pode ser um mestre da estratégia no pavilhão de basquetebol que é usado pelo "quad rugby" mas, fora dele, sente-se frustrado porque o seu filho adolescente prefere tocar violino na orquestra da escola do que praticar desporto (pormenor desenhado de modo certeiro pelos realizadores, em apenas dois, três planos aparentemente casuais), e não perde uma oportunidade para se vangloriar dos seus triunfos desportivos. Há até direito a bebedeiras entre atletas e piadas de mau gosto que os próprios fazem a ajudantes bem-intencionadas (com uma citação de "Ocean"s Eleven" e tudo) - sabem todas as piadas de mau gosto sobre deficientes que já ouviram? Eles põem-nas em prática.

Sim, estamos a falar de gente que vive numa cadeira de rodas, mas o que "Murderball" nos mostra é a cadeira de rodas como metáfora das fronteiras que nós próprios nos levantamos para não fazer as coisas. É essa a inspiração do documentário que Henry Alex Rubin filmou a partir do artigo de Dana Adam Shapiro: mostrar que - como diz um dos jogadores a certa altura - a nossa mente pode ser a nossa maior deficiência, se a deixarmos. Para esta gente - como fica provado pela impressionante desenvoltura de Bob Lujano, que ficou sem braços e pernas em criança com uma forma rara de meningite e leva uma vida perfeitamente normal, conduzindo, cozinhando, teclando ao computador, jogando às cartas -, a cadeira de rodas não é um obstáculo (é, voltamos a dizê-lo, mesmo uma arma). E "Murderball" pode não evitar aqui e ali os lugares-comuns, mas também não embarca cegamente no triunfalismo do "caso da vida"; é um compêndio de histórias que ficam suspensas pelo "continua...". É um filme com gente lá dentro. Não era nada evidente, nem sequer previsível, que assim fosse. Ainda bem que o é.

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