Monstro & companhia

Ponto prévio: esquecer (assumindo que se viu) o "King Kong" original de Merian C. Cooper e Ernest J. Schoedsack, 1933, ponto zero do "monster movie" e dos efeitos visuais modernos, descoberta dos poderes do cinema para visualizar o fantástico.

O que Peter Jackson agora nos propõe, tecnicamente uma "remake" de grande fidelidade temática e estrutural ao original, é, antes, uma outra encenação de um mesmo texto, à imagem do teatro, onde uma mesma peça pode ser reinventada, receber novas leituras ou enfoques, sublinhar outros paralelos. E, no processo, Jackson elaborou um dos "blockbusters" mais subversivos jamais saídos dos grandes estúdios americanos, erigido em meta-comentário ao seu próprio estatuto de grande espectáculo de massas, transcendendo o simbolismo arquetípico do filme original - do qual duplica, literalmente (também em termos de duração...), todos os episódios - para compactar, em três horas de filme, uma espécie de actualização potenciada pela tecnologia do cinema clássico de Hollywood.

Jackson dispersa pelo guião citações d" "A Bela e o Monstro" e do "Coração das Trevas" de Conrad, mas são areia para os olhos que melhor escondem a sua interrogação sobre a própria natureza do cinema, ou, se quisermos, da imagem: Carl Denham (um Jack Black possuído pela energia desesperada da sobrevivência), o realizador obsessivo que lidera o safari à misteriosa Ilha da Caveira em busca de filmar aquilo que mais nenhum homem filmou, manipula a realidade para ela se conformar ao espectáculo, "showman" demiúrgico, misto de vendedor da banha da cobra e reverendo pagão capaz de tudo sacrificar (sobretudo as vidas dos outros) em prol do "homem da rua" que, por apenas 25 cêntimos, poderá viver por procuração (e através de todos os meios do mundo moderno) tudo aquilo a que o mundo moderno não lhe permite aceder.

E Kong, o último dos gorilas gigantes, retirado brutalmente do seu "habitat" natural onde é rei e senhor e transportado para uma selva urbana onde os perigos são de outra índole, é para Denham apenas uma forma de sobreviver, custe o que custar, não hesitando em usar a cumplicidade que se estabelece na selva entre o gorila e a sua cativa, Ann Darrow (Naomi Watts a explicar porque é que é para ela e não para Nicole Kidman que se devia andar a olhar), actriz magoada pela vida que reage e responde àquilo que percepciona como a solidão do predador a ela condenado pelo seu estatuto.

À exploração impiedosa do animal por Denham (no fundo um predador de fato e gravata), Jackson contrapõe a inocência de uma empatia inexplicável onde mulher e gorila reconhecem as feridas um do outro e encontram conforto na partilha de alguma ternura, numa relação que já não é de desejo (passe a expressão) animal mas se transfere para o patamar platónico de uma amizade profunda e profundamente romântica, de um amor quase impossível - vejam-se as magistrais cenas do pôr do sol nas montanhas, com o gorila a proteger Ann como se de uma filha se tratasse, e o passeio no lago nova-iorquino gelado, interlúdio de mágica alegria infantil; sem esquecer o comovente final no topo do Empire State Building.

O maior mérito de Jackson é de construir esta relação de rara profundidade entre a entrega de uma actriz em pico de forma e um gorila inteiramente animado por computador por cima da performance humilde de Andy Serkis (que já dera vida a Gollum na trilogia do "Senhor dos Anéis") - ou seja, de sublinhar mais uma vez que a tecnologia de nada serve sem a emoção humana - e de transformar essa compreensão infinita no coração pulsante do que, afinal, era suposto ser um filme de aventuras e acaba por ser o retrato de dois seres magoados (e nunca foi por acaso que Kong é um parente distante do "homo sapiens") que encontram refúgio nos braços um do outro. Mas, aí, voltamos ao pressuposto de que este não é "um" filme, mas sim um concentrado de muitos filmes arrancados ao cânone da Hollywood dos anos 30, do melodrama ao "back stage musical" passando pelo filme de aventuras exótico, pelo filme de terror ou pela comédia de vigarices. Tudo sem nunca sair do quadro limitado desenhado pelo "Kong" original - mesmo aquela que será a principal "invenção" da versão de Jackson (e também, ao mesmo tempo, a referência mais evidente ao seu passado de cineasta de género, a única cena do filme não recomendável a espectadores mais jovens e impressionáveis e provavelmente a única que não serve a narrativa do filme), a sequência das aranhas, corresponde a uma cena rodada mas nunca usada na montagem final do filme de 1933.

Claro que é discutível se eram necessárias três horas de filme para contar uma história que já foi contada em metade do tempo (e Todd McCarthy, na "Variety", apontava correctamente que estas três horas terminadas literalmente na véspera da estreia mundial têm um certo ar de "director"s cut"). Mas não se dá pelo tempo passar e, chegados ao fim trágico de Kong, compreendemos que Jackson nos está a contar também a história do Orfeu que acaba sempre por destruir aquilo que mais ama em nome do reconhecimento. Carl Denham não hesita em vender a alma ao diabo para garantir os seus cinco minutos de fama, e o seu comentário final - "a beleza matou a besta" - é uma falsa pista mefistofélica. O monstro, aqui, não é quem parece - e este é um "blockbuster" que arranha sem se dar por isso.

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