Era uma vez (fora de tempo)

É sempre assim que começam os contos de fadas, e foi assim que C. S. Lewis começou o seu: "Era uma vez quatro irmãos". Andrew Adamson não começa a sua adaptação de "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa" com "Era uma vez", mas com um bombardeamento alemão sobre a Londres da II Guerra Mundial. E nesse início sintetiza-se a opção de fidelidade de Adamson a um livro que foi o equivalente de Harry Potter no início dos anos 50 e ainda hoje encanta gerações de crianças em todo o mundo - retirar Nárnia do contexto "very British" que o gerou seria condenar à morte este universo misto de pragmatismo rural e lenda medieval, sobre quatro crianças londrinas que, evacuadas para o campo para fugir aos bombardeamentos, descobrem na mansão onde foram acolhidos um portal para um mundo paralelo que só eles podem salvar das garras da pérfida Feiticeira Branca.

É um universo que, pela sua construção como um conto de fadas clássico, metáfora da aprendizagem da responsabilidade e da passagem à idade adulta dentro de um quadro de valores da melhor educação britânica (e, também, pelos ecos da II Guerra que atravessam a sua narrativa, claramente espelhando a união da Europa contra as forças do mal nazi), pertence a outros tempos, mais simples e menos tecnológicos, e chega aos nossos dias como uma história "à antiga" - que, ironicamente, só agora a tecnologia permite filmar de modo a convocar o maravilhoso que todos os contos de fadas procuram, numa altura em que um conto de fadas "à antiga" corre o risco de ser encarado como coisa bafienta e fora de tempo (veja-se a recepção fria reservada à excelente adaptação de imagem real por P. J. Hogan do "Peter Pan" de J. M. Barrie - da qual, não por acaso, Adamson recupera o director de fotografia Donald McAlpine e o cenógrafo Roger Ford).

"O Leão, a Feiticeira..." é, de facto, um filme fora de tempo, naquela que é paradoxalmente a sua fraqueza e a sua força - força porque já ninguém escreve histórias assim (e, lida hoje, esta adquiriu o estatuto que só o tempo pode dar), fraqueza porque já ninguém escreve histórias assim (e, hoje em dia, não é seguro que seja "isto" que os miúdos querem ver). Tivesse sido feito nos anos 60 pela Disney e talvez se tivesse tornado num clássico como "Mary Poppins"; hoje, "fora de tempo", oscila entre a reverência ao universo do livro (numa adaptação fiel, ao contrário do que é habitual com episódios adicionados para preencher "buracos" na narrativa) e uma tentativa de construir um "franchise" cinematográfico familiar que rivalize com Harry Potter e substitua "O Senhor dos Anéis". Mas essa oscilação manifesta-se também na inexperiência do realizador Andrew Adamson, que, depois de uma carreira consagrada aos efeitos visuais e à animação (nomeadamente com os dois filmes do ogre "Shrek"), se estreia na imagem real: o neo-zelandês raramente consegue fazer o filme descolar da mediania competente mas sem rasgos quando reduzido à sua dimensão humana, apesar da justeza dos quatro actores que interpretam os irmãos Pevensie, mas consegue convocar o maravilhoso que pretende sempre que as personagens criadas em animação digital fotorrealista entram em cena (o majestoso leão Aslan, magnificamente vocalizado por Liam Neeson, ou o ternurento casal de castores a que Ray Winstone e Dawn French emprestam as vozes na versão original).

Em última análise, é difícil não simpatizar com o quixotismo romântico desta empreitada tecnicamente intocável: "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa" é um filme simpático que pertence a uma era totalmente diferente do cinema para miúdos, está mais próximo do "Clube dos Sete" de Enid Blyton do que das feitiçarias de Harry Potter; e é isso, mais alguns (infelizmente poucos) momentos mágicos, que o torna encantador.

Sugerir correcção
Comentar