A capa do medo

A marca amarela, no peito do fato de "Batman", não está lá. Tem lógica: se Bruce Wayne se mascara de Homem-Morcego é porque precisa de camuflagem para as suas actividades, e a forma como o fato se estava a desenvolver, como armadura para fantasias S&M (nos filmes de Tim Burton), ou como artifício "camp", com mamilos (nos filmes de Joel Schumacher), estava a criar acontecimentos onde não era suposto.

O Batmobile, o fato, a capa... perderam a qualidade de "fétiches" em "Batman, o Início", e são "gadgets" lúdicos mas sobretudo são funcionais, como num filme de James Bond (e agora, até Christian Bale, o actor que interpreta Batman, pode mexer mais livremente a cabeça e não se sentir encerrado numa máquina de tortura - Michael Keaton, que foi o Batman para Burton, ainda hoje se queixa de uma anca por causa do guarda-roupa).

É preciso que se conte que foi a obsessão de Bale, na fase de pesquisa para a sua personagem, que apareceu com esta ideia, para a narrativa, de dispositivos desenvolvidos por militares que servem à personagem de Bruce Wayne, com a ajuda do cientista Lucius Fox (Morgan Freeman), para criar a sua "persona" de cavaleiro da noite em luta contra o crime - e com uma vingança a cumprir. Essa abordagem veio ao encontro das ideias de Chris Nolan, o realizador, que fala em "realismo" para descrever o filme, o que pode parecer desajustado - afinal, não é a história de um homem que se mascara de morcego e voa?

Para Nolan a questão é essa: como acreditar que um tipo se veste de morcego? Oiçamo-lo (durante um encontro com a imprensa em Londres, onde o Y esteve presente).

"A nossa referência foi o "Super-Homem" de Richard Donner [1978]. Tal como esse filme, alguns exteriores de "Batman, o Início" foram filmados numa cidade americana [Chicago], mas os interiores em Londres. A referência foi um certo cinema de entretenimento dos anos 70, que tinha uma textura rugosa, e que foi filmado também em Londres. Filmámos em Londres por isso, e para aproveitar um certo património artesanal. Isto para dizer que, do que se tratava naqueles filmes e do que se trata neste, é de fazer os espectadores acreditar nos acontecimentos e nas personagens. Por isso falo em realismo".

Por isso Gotham City, que teve Chicago como modelo (e Kwoloon, em Hong Kong, para as zonas mais degradadas), é uma cidade reconhecível. Como se Batman pudesse existir hoje no meio de nós.

Está-se a ver que "Batman, o Início" quer ser "back to basics" (na fórmula que a imprensa anglo-saxónica também tem usado, e de que tem abusado: "bat to basics"). Apesar do título do filme, não é propriamente uma "prequela", porque, querendo contar como Bruce Wayne se transformou em Batman, não quer estabelecer ligações com o que Tim Burton ou Joel Schumacher fizeram [ver textos nestas páginas] nas suas versões sobre o Homem-Morcego. Pelo contrário, quer esquecer-se delas (como se quisesse que o espectador as esquecesse - tarefa difícil, impossível até, no que diz respeito às marcas deixadas por Burton...).

"Batman, o Início" quer reescrever o que já foi escrito (exactamente como a personagem, que Bob Kane inventou há 66 anos, no número 27 da revista "Detective Comics", inspirando-se num filme mudo de 1926, "The Bat", em Zorro, nas utopias voadoras de Leonardo da Vinci e até no aventureiro Douglas Fairbanks, foi objecto de reformulações ao longo dos anos - veja-se o que um autor como Frank Miller fez na década de 80).

Era isso o que estava na cabeça de Chris Nolan quando, tendo caído o seu projecto de filmar a vida de Howard Hughes, com Jim Carrey (porque "O Aviador", de Scorsese, se antecipou), lhe chegou às mãos a proposta de voltar à criatura de negro, cuja última aventura cinematográfica, de 1997, "Batman & Robin", de Schumacher, não deixara saudades.

A vaga de bem sucedidas adaptações de "comics", como "X-Men" e "Homem-Aranha", voltou a pôr o morcego nos céus de Hollywood: Wolfgang Petersen deveria filmar o encontro entre Bruce Wayne e Clark Kent, ou seja, Batman "meets" Superman, mas preferiu "Tróia"; Darren Aronofsky ("Requiem for a Dream") escrevinhou uma sombria e onírica novela gráfica de Frank Miller, "Batman: Year One", que confronta a personagem com as suas raízes de "vigilante", mas não houve entendimento sobre o tom - Aronofsky concebera um pequeno e estilhaçado filme; até correram rumores de um Batman envelhecido, de e com Clint Eastwood. Ou seja, foi uma história de desencontros. Que acabou por ser uma história de coincidência de pontos de vista entre Nolan e o argumentista David Goyer ("Blade"; "Dark City").

O realizador sempre se interessou por Batman, conhecia a série de TV dos anos 60, com Adam West, e os filmes de Burton e Schumacher, mas sempre achou que nenhum deles respondia a questões que considerava fundamentais: por exemplo, como é que um tipo que não tem super-poderes (ao contrário de Super-Homem), adquire as capacidades que adquire para lutar contra o crime?

A vaga de bem sucedidas adaptações de "comics", como "X-Men" e "Homem-Aranha", voltou a pôr o morcego nos céus de Hollywood: Wolfgang Petersen deveria filmar o encontro entre Bruce Wayne e Clark Kent, ou seja, Batman "meets" Superman, mas preferiu "Tróia"; Darren Aronofsky ("Requiem for a Dream") escrevinhou uma sombria e onírica novela gráfica de Frank Miller, "Batman: Year One", que confronta a personagem com as suas raízes de "vigilante", mas não houve entendimento sobre o tom - Aronofsky concebera um pequeno e estilhaçado filme; até correram rumores de um Batman envelhecido, de e com Clint Eastwood. Ou seja, foi uma história de desencontros. Que acabou por ser uma história de coincidência de pontos de vista entre Nolan e o argumentista David Goyer ("Blade"; "Dark City"). O realizador sempre se interessou por Batman, conhecia a série de TV dos anos 60, com Adam West, e os filmes de Burton e Schumacher, mas sempre achou que nenhum deles respondia a questões que considerava fundamentais: por exemplo, como é que um tipo que não tem super-poderes (ao contrário de Super-Homem), adquire as capacidades que adquire para lutar contra o crime? Resposta: o medo. E a resposta está na infância de Bruce Wayne, algo que, diz Nolan, aparece nos outros filmes "mas nunca passou de um pedaço de "flashback"". O realizador e o argumentista foram às fontes, às criações de Kane ou às reescrições de Miller, procuraram eventos-chave e preencheram as lacunas. O resultado é mais ou menos assim: Bruce Wayne, depois de ter presenciado o assassinato dos pais, é criado pelo mordomo, Alfred (Michael Caine). O desejo de vingança, e o sentimento de culpa, levam-no até à Ásia, onde é instruído pelo misterioso Henri Ducard (Liam Neeson), que o atrai para uma sociedade de guerrilheiros ninja que faz do combate ao crime a sua missão; é liderada por Ra"s Al-Ghul (Ken Watanabe).

Entre o sentimento de justiça e o desejo de vingança, Bruce Wayne regressa a Gotham City e enfrenta o seu primeiro inimigo, Dr. Jonathan Crane/Scarecrow (Cillian Murphy). Já veste a capa de morcego, bicho que o aterrorizava na infância - e que, como se verá no filme, é o elo de culpa pela morte dos pais. É assim que Nolan encontrou a resposta à pergunta: como fazer os espectadores acreditar num tipo que se veste de morcego? Bruce Wayne faz do medo a sua arma. A máscara devolve-o, o medo, aos inimigos (Nolan terá, pelo menos, que ser reconhecido por ter criado o Batman psicologicamente mais desenvolvido ou pelo menos mais exposto, diferente do enigma expressionista de Burton e do carnaval de Schumacher; e sendo o medo o fulcro de "Batman, o Início", o mais relevante é o combate entre Batman e Scarecrow, duelo com fantasmas e com os fantasmas dos outros - Scarecrow, utilizando as drogas que induzem o terror nos seus opositores e recorrendo também a uma máscara, é a explicitação e é o duplo maligno de Batman).

Mas encontrar a resposta para a pergunta não bastava, diz Nolan. Era preciso encontrar um rosto, e Nolan ficara impressionado com Christian Bale quando o viu em "Psicopata Americano", de Mary Harron; é um filme em que se pensa quando se vê Bale aqui, mas se os impulsos negativos, e a duplicidade, são comuns às personagens e estão escritas no rosto de Bale, as pulsões são canalizadas em termos positivos pelo Homem-Morcego.

"Escolhi Bale porque queria criar, precisamente, uma versão realista da história. Só a intensidade do seu olhar podia fazer acreditar nesta personagem que não tem super-poderes", resume o realizador.

Bale na escuridão.

Christian Bale não era fã dos filmes de Batman. "Não tinha percebido que era uma personagem interessante, porque os vilões eram sempre mais fortes", explica - e em relação a esse aspecto "Batman, o Início" quer também marcar diferença e resolver em favor da personagem principal, não deixando que carismáticos vilões usurpem o lugar do Homem-Morcego.


Continua Bale: "Foi ao ler os "comics", sobretudo "Batman: Year One", de Frank Miller, que percebi que, ao contrário de Super-Homem, aqui há uma personagem e um conflito" - há anos, Bale leu a obra de Miller e chegou a interessar-se pelo projecto de Aronofsky, que entretanto abortou. "Batman não tem poderes especiais, por isso a única maneira de conseguir fazer o que faz é ter o físico que tem", explica, e assim se percebe a outra diferença em relação aos outros Batman: a imponência física da personagem. Quem tenha visto Bale em "The Machinist" [Brad Anderson, 2004], esquálido, consumido pela insónia e pelo cansaço, e agora encontre um corpo inchado de músculos, como o de um "action hero", pode perguntar o que anda este actor a fazer à sua saúde.

"Chris [Nolan] telefonou-me na altura em que eu estava a filmar "The Machinist", perguntou-me: "como é a tua forma física neste momento?". Respondi: "patética, não consigo fazer flexões". Estou muito orgulhoso de "The Machinist", mas olhando para trás concordo que foi uma loucura emagrecer daquela maneira. Na altura não percebi que estava obcecado. Acho que não se deve fazer não importa o quê, pode prejudicar a nossa saúde, embora essa ideia seja tentadora". É um obsessivo, porque para estar em forma para "Batman, o Início" exagerou de tal forma na dieta que quando chegou ao "set" ouviu piadas sobre um tal "Fatman" (e lá voltou a emagrecer outra vez).

Em criança já gostava de filmes de terror, "gostava de andar nos bosques à noite, gostava de becos escuros", por isso poucas dúvidas haverá, e a sua carreira reforça-o, que está em casa a interpretar o homem da capa do medo. Vai estar numa "sequela"? Ri-se, diz que não vale a pena contornar a questão: sim, está contratado. Mas defende "que não vale a pena fazer "sequelas" quando não há nada de novo". E aí Chris Nolan volta a dizer, para que ninguém tenha dúvidas ao ver uma das cenas finais de "Batman, o Início" em que se anuncia a chegada de um tal Joker. Isso não está lá para "pegar" com o primeiro "Batman" de Burton, em que Jack Nicholson fazia uma entrada de leão como o vilão de sorriso rasgado. É para anunciar a chegada de outro filme. "Não faz sentido falar em "prequelas" ou "sequelas". Do que se trata é de reinterpretar os filmes que até agora foram feitos, tal como fizemos com o Batmobile e com a capa".

É é assim que o lugar de "Batman, o Início", afinal, não depende só do começo. Ainda terá que ser encontrado.

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