Sempre o embuste

"Seria fabuloso poder hipnotizar o público com algumas imagens e não ter, em seguida, de lhe mostrar um filme mas apenas a palavra fim, acordando-o ao fim de uma hora. Isso seria verdadeiramente o filme absoluto". Foi isso o que o dinamarquês Lars von Trier tentou fazer explicitamente (demasiado explicitamente?) nos primeiros filmes da sua carreira, com a trilogia dedicada à Europa, "O Elemento do Crime"(84), "Epidemia" (87) - nunca estreados em Portugal - e "Europa" (91).

A partir de hoje vão ouvir-se vozes "off" a lançarem a contagem decrescente em direcção ao mergulho nos fantasmas e no subconsciente do cinema, e vai testemunhar-se o turbulento crescimento em público de um cineasta. Nessa primeira trilogia, a sua relação com os filmes estava presa do maravilhamento infantil por um número de circo. "O que me interessava era o aspecto técnico. Com uma câmara podia divertir-me, tinha tantas possibilidades...".

"Não tinha nada a dizer" - não vale a pena fazer-lhe perguntas sobre a Europa nesses filmes glaucos, de paisagens húmidas; ele responderá sempre que "os filmes são mais vastos do que as palavras". Von Trier estava, sobretudo, refém de paisagens e de atmosferas. "O meu cinema partia de um amor profundo por excertos de filmes que vi e que me marcaram. Por exemplo, durante o período da escola vi O Espelho, de Tarkovski: provavelmente, a minha experiência emocional mais forte de cinema. E no entanto, vi apenas algumas imagens. Mas que minutos. Waooow. Foi quase uma experiência religiosa, uma revelação. Pensei logo: Eis a razão da minha vida. Quero morrer por este tipo de imagem, de experiência. À parte isto, nem sei qual é o tema de O Espelho, penso mesmo que não compreendi o filme. Mas pequenos momentos de revelação como aquele, isso é que é formidável".

Hoje, ao rever-se esse "primeiro Lars von Trier", testemunha-se essa aproximação que tentou transformar a sala de cinema num laboratório de experiências sensoriais. "Faço filmes para tentar encontrar a magia do cinema, como um alquimista que tenta fabricar ouro e nunca o consegue mas tenta mais uma vez, e mais uma vez". Perceber-se-á porque é que na altura foi integrado na chamada "geração visual dos anos 80" - as imagens a gritarem "visionarismo" por todos os lados, a utilização do preto e branco ou o sépia, o trabalho a partir dos "clichés" do cinema clássico como uma reescrita de textos do passado, a estratégia "rétro", com a voz "off" a querer hipnotizar o espectador e que tinha tanto de "wellesiano" como de íman publicitário.

Mas se em "O Elemento do Crime" o visionarismo (Tarkovski, mas também o Welles de "Relatório Confidencial") instala um "no mans land" do aleatório, já "Epidemia" pode ser uma descoberta da retrospectiva. Funciona, para essa primeira fase, como "Os Idiotas" para a obra recente: um momento de experimentação turbulenta. Mostra um cineasta (Lars von Trier a interpretar um realizador chamado Lars) no seu processo de escrita de uma longa metragem, intitulada precisamente "Epidemia", que contaria a história do aparecimento de uma epidemia. O que acontece? Uma verdadeira praga vai atacar o realizador e a sua equipa, e o veículo para a erupção da doença vai ser uma rapariga, que, hipnotizada, "mergulha" para o "filme dentro do filme" e traz a doença à superfície da "realidade".

"Epidemia" era, assim, a materialização do "absoluto" que perseguia o cinema do realizador: provocar a contaminação das percepções, criar na sala escura um momento de "milagre" (algo que escapa ao simples mecanismo técnico), que é o tal sono profundo de que se acorda apenas com a palavra "fim". Se em "Europa" o comboio em andamento e a voz "off" apenas ilustravam a mecânica, em "Epidemia", antecipando aquilo que de mais orgânico irromperia no futuro "The Kingdom I"/ "O Reino I" (94), é a própria película que palpita como um "santo sudário", como se, repositório das transferências milagrosas que se operaram durante a hipnose na sala escura, acabasse no fim em chagas, a sangrar.

Lars von Trier jura que nessa sequência de hipnotismo de "Epidemia" a actriz foi realmente hipnotizada. Não era grande actriz, disse, mas através da hipnose transformou-se numa "óptima" actriz. Ora, o "segundo" Lars von Trier, diferente do cineasta com o fétiche das imagens, nasceu em "O Reino I", série para a televisão dinamarquesa, através, também, de uma nova relação com o trabalho dos actores - e, ainda, conseguindo que o suporte cinematográfico vibrasse como organismo vivo e não apenas uma tela em branco ou hipótese para ilustrar as "visões". Misturando na montagem as diferentes, e às vezes contraditórias, aproximações de um actor à sua personagem, criava uma ilusão de documentário que se libertava da estilização e instalava o ilógico do quotidiano. E a sua obra dava um salto de gigante.

"Também é agradável renunciar ao poder ou partilhá-lo. É uma revelação. Fiz isso também com alguns dos actores de Ondas de Paixão. O meu desejo de controle era bem maior durante os meus primeiros filmes. Em grande parte reunciei a esse controle. E com "Os Idiotas" renunciei totalmente. Recebe-se tanto em troca quando se ousa abandonar essas exigências".

Lars von Trier utiliza o cinema como uma "cura" para as suas fobias (o medo das viagens ou as várias hipóteses de cancro que descobre em cada parte do seu corpo) e alívio das suas obsessões. Com essa experiência vai trabalhando as hipóteses contraditórias de uma reestruturação pessoal. O que se passou então - a partir de "O Hospital I", e depois com "Ondas de Paixão" (96) e "Os Idiotas" (98) - foi o processo de uma "cinecura", que obrigou à rejeição daquilo que, enquanto realizador, tinha feito antes. Começava o agigantamento de um cineasta.

Por essas alturas descobria, no leito de morte da mãe, que afinal não era o filho de um judeu, como ele pensava, e convertia-se ao catolicismo. Mais: o ambiente "de esquerda" e "convictamente ateu" onde nasceu deixou-lhe uma sede de ordem. "Senti necessidade de pertencer a uma comunidade de fiéis porque os meus pais eram ateus convictos". Falava do catolicismo, claro. Mas também do movimento Dogma 95, com o seu postulado para uma nova ordem cinematográfica - aquilo que se podia fazer ou não no acto de filmar -, um novo "moralismo" que proibia o artifício.

"Hoje tudo é demasiado fácil no cinema. Pelo contrário, com as regras do Dogma é mais difícil filmar. Sobretudo, é mais difícil enganar - é este o espírito do Dogma. O cinema tornou-se superficial e o seu maior defeito é que ele faz batota: é muito fácil arranjar uma bela imagem e fazê-la acompanhar com bela música. Com tantos subterfúgios, não se vê nada a não ser o subterfúgio. Com o Dogma, é impossível recorrer aos subterfúgios habituais do embuste cinematográfico. É uma prurificação".

"Os Idiotas" foi, assim, momento fulcral: expiação (dos pecados passados), "cinto de castidade" apertado para aprisionar os impulsos naturais do controlador e manipulador ("foi a primeira vez que realizei um filme a cores sem me setir culpado"), e ironia, com masoquismo, em relação a essa disposição para a "autenticidade". Essa história de um grupo de burgueses que escolhia a explosão libertária - comportarem-se como idiotas - para chocar a sociedade, cada vez mais perfeita mas que não resolve a insatisfação, era percorrida por um tom punitivo. O "happening" da verdade, com toda a nostalgia libertária dos anos 70, era permanentemente confrontado com a(s) sua(s) impostura(s). Como dizia o realizador ao PÚBLICO na altura da estreia do filme: "A moral de Os Idiotas é que se pode ter toda a técnica da idiotice, mas, se não há um desejo e uma necessidade profundos, isso não conduz a nada. A idiotice é como a hipnose ou a ejaculação: se as queremos desesperadamente, não chegamos lá; se não queremos, sim."

Estava a falar da personagem feminina de "Os Idiotas", Karen, elo de ligação entre a personagem de Emily Watson de "Ondas de Paixão" e a Selma/Björk do último "Dancer in the Dark", todas elas "inocentes", agentes do divino (os filmes constituem uma nova trilogia, a "Golden Heart Trilogy"). Mas podia estar a falar de si e dos seus inícios no cinema (e da tentação hipnótica desses filmes), para os recusar.

O que quer que se pense da "seriedade" do Dogma (embuste publicitário?), que parece até já nem estar activo ("Dancer in the Dark" não foi realizado segundo esses princípios), e o que quer que se pense desse último filme ("remake" falhado de "Ondas de Paixão"?), é irrecusável que a obra de Lars von Trier se revelou, depois dos pormenores decorativos iniciais, de uma surpreendente modernidade. Os filmes passaram a formar um corpo a corpo com as contradições e utopias do cineasta, num "work in progress" constante. E depois de quer impor milagres nos primeiros filmes, Lars von Trier estará hoje, como as suas heroínas, mais humilde e naturalmente disposto à revelação - até porque, como "caçador de milagres", não deixa de fora a hipótese de se intrometer sempre o embuste.

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