O Tempo Reencontrado

Proust inadaptável? Raoul Ruiz atirou-se à tarefa, convencido de que o universo proustiano é cinematográfico - aproximando-o ao cinema de Meliès, por exemplo - e assim nasceu "O Tempo Reencontrado". Mas à força de querer evitar os esplendores decorativos, de tanto criar efeitos de distanciamento, esqueceu-se de criar personagens. E quem não conhecer o livro arrisca-se a não entender quem são aquelas "máscaras" com rostos de estrelas conhecidas, como Catherine Deneuve, John Malkovich ou Emmanuelle Béart. Em entrevista à revista Cahiers du Cinéma, Raoul Ruiz coloca uma questão extremamente interessante para abordar a sua particular visão do universo proustiano: defende que "À la Recherche du Temps Perdu" é uma obra cinematográfica, não porque apresente uma verdadeira visualidade, mas porque utiliza processos fílmicos, como vários tipos de "raccord", criando um jogo disperso de pistas, mais próximas da linguagem cinematográfica do que da literária. Uma afirmação deste tipo levanta desde logo um outro problema: até que ponto os livros que se socorrem de analogias directas com a tessitura fílmica acabam por se constituir em objectos inadaptáveis? O exemplo clássico é "O Som e a Fúria", em que William Faulkner usa a pluralidade de pontos de vista para contar a mesma história quatro vezes, seguindo lições da montagem cinematográfica e tornando a malha narrativa tão apertada que qualquer adaptação se confrontará sempre com a necessidade de explicar e de descomplexificar. Mais radical, ainda, se torna o caso da trilogia "USA" de John dos Passos, construída como um filme, com segmentos nomeados como "newsreel" (documentários) e a dispersão da narrativa principal esboçada ao sabor de "takes" alinhados por uma montagem fragmentária, que até hoje ninguém se atreveu a transpor para o grande ecrã.

A maldição da inadaptabilidade?

A "Recherche" pertence a este tipo de obras resistentes ao cinema, com a agravante de que Proust, ao contrário de Faulkner e de Dos Passos, não manifestava qualquer atracção pela "arte das imagens", privilegiando uma estrutura musical com constantes reexposições temáticas e inúmeras variações. Por isso, Visconti, que pensava na adaptação do romance como o corolário da sua obra, uma espécie de autobiografia transposta, teve sempre o cuidado de precisar que a fidelidade teria que operar-se em relação ao sentimento e não ao estilo proustiano, tentando penetrar no "labirinto profundo de Proust" para tentar explicar uma posição, uma atitude, uma crise de ciúme. Visconti seria, porventura, o único cineasta a conseguir penetrar na essência desse labirinto, na grandeza por detrás da frivolidade, na ambiguidade sexual por detrás das máscaras. As filmagens deveriam ter começado em Agosto de 1971. O argumento de quase 400 páginas centrava-se nas histórias de amor e ciúme entre Marcel e Albertine e entre o Barão de Charlus e Morel, com breves tangências ao romance de Swann e Odette de Crécy. Os locais das filmagens estavam decididos; o elenco estava escolhido: Silvana Mangano em Oriane, Alain Delon seria Marcel, Helmut Berger em Morel, Charlotte Rampling uma hipótese para Albertine, para Charlus o realizador queria Marlon Brando e até Brigitte Bardot parecia disposta a encarnar Odette. No entanto, tudo se desmoronou, bem como a tentativa de reciclar o projecto com Joseph Losey e Harold Pinter. Em 1984, Volker Schlondorff assinava o catastrófico "Un Amour de Swann" com Jeremy Irons, Ornella Muti e, como único grande trunfo, o magnífico Charlus de Alain Delon. A "maldição da inadaptabilidade" parecia prevalecer. Até que a persistência de Paulo Branco e a ideia de que o barroquismo de Raoul Ruiz encaixava numa possível leitura de Proust fez nascer "O Tempo Reencontrado", mais uma vez parcelarizando a "Recherche" e incidindo, agora, sobre o epílogo da obra. Como chave da adaptação, exibe-se uma recusa de todo o academismo decorativista, conjugando o rigor da reconstituição com um distanciamento surrealizante, que passa por uma aproximação ao cinema dos primitivos franceses, nomeadamente Meliès, em perigosa procura de cronológica contiguidade estética. Esta dimensão mágica, que se prolonga por paralíticos e por deformantes efeitos ópticos pretende conferir ao filme uma não-linearidade, mas, muitas vezes, esgota-se na brincadeira visual. O outro importante achado "ruiziano" é um protagonista que coincide com a figura literária do autor, Marcel Proust, até na caracterização do pouco conhecido Marcello Mazzarella de forma a torná-lo um sósia do escritor. Esta opção, defensável embora, abre uma perigosa simplificação: faz coincidir a entidade autoral com o narrador, em vez de admitir a bem mais verosímil (hoje, que a biografia de Proust permite falar da sua homossexualidade, por exemplo) dispersão em diversas personagens: Marcel, mas também Charlus, Morel ou Saint-Loup, para já não falar de algumas das figuras femininas. Aliás, na primeira das duas únicas ocorrências do nome próprio, colado ao narrador, em "La Prisonnière", a antepenúltima secção da "Recherche", ironiza-se claramente com a hipótese da coincidência entre o nome do narrador e o do autor. Ruiz simplifica e empobrece, inclusive, a complexa dimensão ética por detrás da queda e degenerescência de Charlus, sublinhando a traço grosso a sequência do "hotel" de Jupien. Por outro lado, uma das fraquezas deste arriscado exercício de correspondência (não adianta dizer que o filme se independentiza, a sombra de Proust estará sempre presente para os defensores, como para os detractores) passa por um elenco de vedetas que desfila, ante os nossos olhos, fazendo as suas rábulas: é que se o Saint-Loup de Pascal Greggory, a Verdurin de Marie-France Pisier ou a Oriane de Edith Scob se tornam convincentes (e inesquecíveis) "fantasmas" proustianos, Malkovich em Charlus, Deneuve em Odette ou Emmanuelle Béart em Gilberte são clamorosos erros de "casting" (embora trunfos de peso no sucesso comercial do filme), arrastando-se sem grande densidade dramática como simples ilustrações. Tal constitui, aliás, uma das contradições desta interessante, ainda que falhada, incursão pelo território proustiano: à força de querer evitar os esplendores decorativos (que se esperariam de Visconti), de tanto criar efeitos de distanciamento (com três Marcel por vezes coincidentes no plano), temendo banalizar e academizar a narrativa, Ruiz esquece-se de criar personagens. E quem não conhecer o livro arrisca-se a não entender de todo quem são aquelas "máscaras" com rostos de estrelas conhecidas.
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