Gostam Todos da Mesma

Uma escola, um adolescente neurótico, um industrial mal amado e uma professora que é o objecto de desejo dos dois. A nostalgia da miniuatura da América corrompida pelo bizarro. Cenários de fábula com música dos Kinks, dos Who e dos Rolling Stones. "Gostam Todos da Mesma" é a segunda obra de Wes Anderson, que a Associação de Críticos de Los Angeles considerou o Melhor Cineasta da Nova Geração.

FotoNa imprensa norte-americana houve quem considerasse "Rushmore" "a melhor comédia americana depois de Annie Hall" e houve também quem, a propósito desta segunda longa-metragem de Wes Anderson - que lhe valeu a distinção de Melhor Cineasta da Nova Geração pela Associação de Críticos de Los Angeles -, evocasse os nomes de Lubitsch, Frank Tashlin ou mesmo Buster Keaton. Mais razoável e menos delirante é a entrada no número de Fevereiro da revista Interview: "Desde a segunda metade da década de 80 - a época de Blue Velvet, True Stories, Raising Arizona e Selvagem e Perigosa - que não havia um pedaço de Americana pós-moderna tão engraçada, tão atenta e tão certeiramente bizarra". Será exagero, porque até nem é exemplo único - esquece-se, por exemplo, a crueldade de um filme como "Welcome to the Dollhouse", de Todd Solondz, a primeira obra de um cineasta que na semana passada foi premiado na Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto (com "Happiness", outro exemplo para acrescentar à lista). Mas é curioso que a neutralidade descritiva do título português encontrado para "Rushmore" - "Gostam Todos da Mesma" -, ao procurar aproveitar o sucesso de outro filme, "Doidos por Mary", está duplamente a chegar às fontes mais próximas do filme de Wes Anderson: pensa-se, apesar das diferenças, no filme dos irmãos Farelly, "Theres Something About Mary", que, também apesar das diferenças, já tinha evocado a iconoclastia pop de alguns filmes da década de 80, sobretudo "True Stories", de David Byrne, e "Selvagem e Perigosa", de Jonathan Demme. "Pedaço de Americana pós-moderna...", diz a Interview. Isto quer dizer que há uma invenção miniatural de um país e que há espaço para a "nostalgia" e para a corrupção da "estranheza". Depois de uma primeira-obra, "Bottle Rock", que era sobretudo uma piscadela de argumentista, indo buscar os seus falhados heróis ao imaginário scorseseano, e que deu a Anderson o MTV Best New Filmaker Award de 1996, "Rushmore"/ "Gostam Todos da Mesma" imobiliza, como num "graffiti", as cores de uma América bizarra. Em vez do cocktail explosivo de Demme ou da escatologia dos Farrely, os sinais de paranóia são silenciosos, estão concentrados na marcação formal que é feita com a câmara, com os planos e com o décor. É um arsenal discreto mas meticuloso e implacável (por aí podem-se evocar as perversas comédias de Danny de Vito que utilizam os despojos do esplendor cinematográfico clássico para acentuarem um mundo esquizofrénico ou demente) e diz mais sobre o que se passa dentro das personagens do que elas alguma vez exteriorizam. Por exemplo, o que se passa por trás dos óculos de Max Fischer? Liceu americano, Rushmore, o local mais óbvio para uma fábula sobre o crescimento e o ideal para a bizarria nascer como cogumelos. Max Fischer - o estreante Jason Schwartzman, escolhido entre 1800 candidatos para o papel, e que é filho da actriz Talia Shire, o que faz dele sobrinho de Francis Coppola - tem 15 anos. Edita o jornal da escola, dirige a companhia Max Fischer Players, para a qual escreve peças sobre Serpico e o Vietname, preside ao Clube de Xadrez e a tudo o resto que a sua obsessão não deixa perceber que é incapaz de levar a bom termo. Para além desta elasticidade patológica, é o pior aluno da escola. Em suma, um "nerd". Max apaixona-se por Miss Cross, a professora (Olivia Williams), e quer instalar um aquário na escola em honra dela. Pede ajuda a um industrial do aço, Mr. Blume (Bill Murray), um ex-veterano do Vietname que perdeu o seu cenário, a capacidade de amar a mulher e os filhos e ser amado por eles, e que reconhece em Max a energia que lhe falta - a forma como Murray, distinguido por associações de críticos americanos de Los Angeles e Nova Iorque, trabalha a tristeza e a desadequação da personagem é um modelo da calculada progressão do filme: enigmática, algo elíptica e com uma superfície de serenidade. O problema é que Max resolve, por sua alta recriação, construir o aquário nos sagrados terrenos do baseball escolar - o que o faz ser expulso - e Blume também se apaixona por Miss Cross - o que o faz ter de declarar guerra ao amigo. Só aparentemente, já agora, é que o objecto de desejo, a professora, é personagem de cenário seguro. Também está em perda, o seu segredo é uma história de amor interrompida pela morte. Wes Anderson reforça este alheamento das personagens em relação à imagem da sua obsessão - uma desproporção entre o que são e a consciência que têm disso -, esta derrapagem e ausência, instalando o filme no tempo e nos cenários irreais da fábula. É o próprio realizador que conta que, para uma história que se passa na actualidade, deu a ver aos seus colaboradores filmes de época, como "A Vida e a Morte do Coronel Blimp", de Michael Powell, "A Idade da Inocência", de Scorsese, ou "As Duas Inglesas e o Continente", de Truffaut. As sequências, em "Gostam Todos da Mesma", abrem e fecham como as peças que Max Fischer encena na escola, ou seja, com cortinas de palco, reforçando a estilização e a intemporalidade deste mundo encerrado - deve notar-se, já agora, que esta consciência formal pretende levar o filme para domínios do artifício que a "banalidade" narrativa não consegue acompanhar. E na banda sonora ouvem-se Kinks, Cat Stevens, Donovan Leitch, The Who, Rolling Stones, The Faces - para além de John Lennon e Yves Montand -, símbolos de uma energia pós-adolescente que é anacrónica (esse foi o som da "invasão britânica" dos anos 60) e deslocada. Como se este fosse um "graffiti americano" imobilizado, suavemente petrificado pela neurose.
Sugerir correcção
Comentar