Doidos por Mary

"Doidos por Mary" foi o fenómeno do Verão nas bilheteiras americanas. Não foram só os adolescentes regressivos que procuraram a escatalogia ou aplaudiram os tiros ? com culpa ou sem ela ? ao politicamente correcto. À volta de Cameron Diaz um grupo de infelizes massacrados pelo desejo ? isso inclui um cão e um paraplégico ? desfaz-se em traições. Sobre ela vomitam-se humilhações. Quem flagela esta procissão é o canto de Jonathan Richman, o infeliz e incompreendido trovador branco de uma América risonha. E negra. "Isto é assustador. Peter e Bob Farrelly brutalizaram de forma extremamente eficiente a comédia romântica. Como é que se faz melhor? Ver este filme é o mesmo que levar a nossa filha de 13 anos aos bastidores de um concerto de rock, antes de ela ver o espectáculo." E um pai quer proteger os filhos da intimidade suada que se esconde atrás dos palcos. Quem se espantou assim com "Doidos por Mary" foi Jeff Arch, que em 1993 escreveu o argumento de "Sintonia de Amor"/ "Sleepless in Seattle", comédia romântica realizada por Nora Ephron com Meg Ryan e Tom Hanks (vem aí a sequela, chama-se "Youve Got Mail"). Faz sentido que tenha sido assim, porque, para os irmãos Peter e Bob Farrelly, as comédias românticas dos últimos anos, que apareceram com títulos indistintos que tinham sempre "sintonia" e "amor", foram demasiado previsíveis e não colocaram suficientes obstáculos às personagens. Eles, os irmãos de Rhode Island, quarentões que começaram por se destacar quando impingiram dois episódios à série Seinfeld, como já tinham desistido de esperar por uma comédia para adultos vinda de Hollywood, meteram mãos à violentação. O que ninguém esperava era que os números de "Doidos Por Mary" nas bilheteiras dos EUA (já ultrapassaram os 160 milhões de dólares, foi o fenómeno do Verão passado) dessem mostras de heterogeneidade, obrigassem à conclusão de que ao público jovem masculino que foi atrás do humor regressivo e da escatologia de "Dumb and Dumber" (1994) se juntassem agora mulheres, casais e até um público mais velho. O gosto dos norte-americanos deixou de ser tão rígido e a tolerância para o humor de casa de banho cedeu? Os executivos de Hollywood prevêem já o próximo filão.

Cantigas de escárnio e mal-dizer

A dissonância por uma dupla de menestréis, em vez da sintonia de amor. Cantigas de escárnio e mal-dizer, em vez das cantigas de amigo. O cantor e compositor Jonathan Richman e o baterista Tommy Larkins (ver texto ao lado) são os baladeiros de serviço, e no início estão pendurados numa árvore como gnomos, para comentarem a procissão medieval de torturas e humilhações que se vai seguir. Apresenta-se primeiro a boca de Ted Stroehmann (Ben Stiller), que, como alguém reparou, "tem mais metal nos dentes do que O Homem da Máscara de Ferro". Em 1985, no liceu, o espaço que alimenta as monstruosidades, Ted olha para Mary Jenson (Cameron Diaz). Devido aos dentes, mas também ao cabelo, Ted não imagina como subiu na consideração de Mary ao salvar de um arruaceiro o irmão dela, um deficiente mental. Algumas hipóteses que teria ficaram afastadas, pensou ele, quando, com o fecho das calças, torturou a sua anatomia (arrisca-se um grande plano) e, involuntariamente, sabotou o dia em que ia acompanhar Mary ao baile do liceu. Hemorragia, e um salto no tempo. Treze anos depois, Ted é escritor, já não usa aparelho nos dentes e o cabelo já não constitui afronta. Mas continua a pensar em Mary e isso atirou-o para a cadeira do psicanalista. Um amigo, Don (Chris Elliot), sugere-lhe que contrate um detective (Matt Dillon) para localizar o objecto do seu afecto, e é nesta altura que Mary vai começar a ser o corpo de vários delitos. Afinal, o detective é um gorduroso trafulha de bigode sibilino, que quer ficar com ela e para isso engana Ted, muda a dentadura (outra vez os dentes, obsessão trituradora a deste filme...) e faz-se passar por arquitecto; o paraplégico (Lee Evans) que tanto flagela a pulsão politicamente correcta do espectador com exercícios de equilíbrio instável sobre muletas é afinal um "pizza boy" sem deficiências físicas, mas com uma deficiência mais perniciosa ? a obsessão por Mary; e em Don, o amigo de Ted, leveda também a frustração do desejo, de tal forma que o seu rosto é campo fértil para pústulas, que rebentam como cogumelos atómicos. Como todos se enterram em traições, também a beleza de "poster" de Cameron Diaz, o objecto de tanto afecto, não vai passar incólume e, a certa altura ? antes de uma cena em que um cão é electrocutado ?, os seus cabelos ficam em pé com a prova do delito (o desejo de Ted) transformado em gel. Qual é a diferença, afinal, entre o gel de "Doidos por Mary" e a forma como Jeff Daniels se "aliviava" em "Dumb and Dumber"? Peter e Bob Farrelly não escondem que o humor, no seu trabalho, é algo que floresce com esplendor numa caserna militar ? de qualquer forma, descobre-se alguma inocência juvenil na forma como manobram a artilharia apontada ao politicamente correcto, como, por exemplo, parecem pedir ao espectador que os desculpe pela patifaria de o levar a identificar nas feridas que devastam o rosto de uma personagem... a sida. Mas enquanto a escatologia de "Dumb and Dumber" ? o título com que esse filme foi distribuído no Brasil é o do programa dos Farrelly: "Debi & Lóide" ? se desenrolava em "sketches" que davam vazão às pulsões laxantes de Jim Carrey, "Doidos por Mary" constrói-se em estrofes de um canto negro à América. À facilidade de citar David Lynch, é preferível evocar os "cocktails" explosivos e musicais de Jonathan Demme da década de 80 ("Selvagem e Perigosa" à frente), que também se passeava por vários géneros cinematográficos e tinha uma semelhante componente de punição masoquista. Só que à explosão "pop" de Demme, em "Doidos por Mary" o desfile de (auto)flagelos ? as taras, o sexo (a masturbação), a obsessão com a forma correcta de nomear a diferença... ? é comandado pelos sons de uma marcha de execução. O carrossel só pára quando Jonathan Richman, o trovador investido da função de coro, de mestre-de-cerimónias e de flagelador desta procissão americana, é abatido. Num filme de Oliver Stone ou de Robert Altman, a seguir ao tiro na América viria a imagem da bandeira ao vento. Como não é o caso, depois do tiro, Ben Stiller dá um beijo a Cameron Diaz.

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