Marrocos: um país com um rei que tem 32 milhões de clientes

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Economia marroquina está nas mãos do rei Mohamed VI e de dois amigos de juventude, dizem dois jornalistas franceses Foto: Abdelhak Senna/AFP

Pedra basilar da Constituição aprovada após as primaveras árabes, Mohamed VI deixou de ser "sagrado". Mas um novo livro mostra que é cada vez mais dono do país e que afinal continua a ser sagrado

Conhecedores de Marrocos, onde ambos já viveram, os jornalistas Catherine Graciet e Éric Laurent quiseram "fazer um ponto de situação da monarquia marroquina no contexto das primaveras árabes, tentar compreender como se está a adaptar". Acabaram por escrever Le Roi Prédateur, retrato de um monarca caprichoso e de um sistema único, onde "é o povo que, a cada dia, se Deus quiser, enriquece o rei comprando os produtos das suas empresas".

"Durante a nossa investigação percebemos que o rei está à cabeça de uma grande fortuna que aumentou consideravelmente enquanto os recursos e os lucros do país enfraqueciam. Isso surpreendeu-nos", explicou Laurent à revista L"Express.

Em 2009, na sua lista dos mais ricos do mundo, a revista norte-americana Forbes colocou o rei de Marrocos, Mohammed VI, em sétimo lugar, com uma fortuna de 1900 milhões de euros. Ao contrário de outros que tinham perdido com a crise financeira, M6 (como é chamado na imprensa marroquina) era a personalidade cuja fortuna mais crescera em 2008.

"Quando mergulhámos um pouco mais, apercebemo-nos de que as práticas impulsionadas pelo rei são na verdade uma forma de desvio: súbditos que se tornam clientes de empresas reais em situação de quase monopólio; captação, em benefício destas empresas, de parte significativa das subvenções do Estado e dos fundos de cooperação", diz Laurent, na mesma entrevista ao L"Express. "Estamos no campo da predação."

Os dois jornalistas sabem que "dirigentes autoritários em todo o mundo desviam riquezas nacionais". Porém, o abuso de poder em Marrocos, concluem, "revela uma situação inédita". É que o país "tem toda a aparência de um sistema económico normal, e até sofisticado: bancos, empresas, sector privado". Mas o rei é "o principal banqueiro, segurador, exportador e agricultor", controlando "igualmente o sector agro-alimentar, a grande distribuição e energia". E isso faz dos "32 milhões de marroquinos não apenas súbditos mas também clientes do soberano".

A economia marroquina está entregue ao rei, de 47 anos, e a dois dos seus amigos de juventude. "Um estrangeiro não pode ter negócios em Marrocos, se não tiver relações com Mansour Majidi, que gere a fortuna do rei, Fouad al-Himma, o seu conselheiro político, ou o próprio soberano", resume Laurent.

Mas nada é certo neste mundo de arbitrariedade real. A empresa saudita Savola, por exemplo, instalou-se em Marrocos em 2004, com a bênção de M6. Tudo corria bem até ter conseguido, um ano depois, resultados acima dos esperados, fruto do sucesso do seu azeite Afia. O problema é que um rei que vende tudo também vende azeite e, no mesmo período, "a filial da ONA [holding real] tinha perdido 10% de cota de mercado".

O sucesso valeu à Savola ser acusada de dumping pelo Conselho da Concorrência e ver os supermercados Marjane e Acima, propriedade da holding real, deixarem de vender os seus produtos. Cinco anos e vários processos na justiça depois, a Savola foi posta à venda.

Provocações e predações

O livro de Laurent e Graciet, à venda em França desde a semana passada, não será publicado em Marrocos: a edição de 26 de Fevereiro do jornal espanhol El País, que reproduzia excertos, foi proibida pelo Governo de Rabat. A decisão gerou estranheza nos media marroquinos, que a noticiaram. É que, apesar de algumas revelações inéditas, quase tudo o que livro compila já foi divulgado pela imprensa marroquina independente, em papel ou na Internet.

Numa conversa telefónica com o PÚBLICO, o politólogo marroquino Mohamed Darif nota que o jornal francês Le Monde também publicou excertos de Le Roi Prédateur e não foi proibido. "Por vezes, estas decisões parecem ser tomadas mais por causa do tom do que do conteúdo. A acção das autoridades é diferente, se o tom é objectivo ou provocador", diz Darif. Cartoons, por exemplo, nunca passam pelo crivo.

Este livro não foi a primeira vez em que vimos a palavra "predação" associada a Mohammed VI. "Predação económica e financeira" foi a expressão usada por Omar Radi para falar da monarquia numa entrevista ao PÚBLICO em Maio. Radi é um dos impulsionadores do Movimento 20 de Fevereiro, a expressão marroquina das revoltas árabes que saiu à rua pela primeira vez nessa data, em 2011, para pedir um "rei que reine e não governe".

M6 foi rápido a responder ao 20 de Fevereiro. A 9 de Março, anunciou uma revisão constitucional para fortalecer o Parlamento e o Governo, tornar a Justiça independente e alargar os direitos civis dos marroquinos. "Não falou da predação económica e financeira", notou Radi.

O jovem de 26 anos estudou Análise Financeira e Sociologia Política e fez uma tese sobre as ligações entre o poder político e o mundo dos negócios. "A fortuna real multiplicou-se por cinco. Basta ler os telegramas da WikiLeaks para perceber que o rei não quer saber da política."

Os autores de Le Roi Prédateur leram os telegramas da WikiLeaks e falaram com dezenas de pessoas (só cinco aceitaram ver os seus nomes publicados) para contar a mesma história que ouvimos a Radi num café de Rabat. Uma história de holdings e siglas, de terras expropriadas, açúcar, leite, azeite, mas também de minas, imobiliário, um festival de música ou um TGV. Que só é possível porque o rei, que a nova Constituição diz ser "inviolável", "comandante dos crentes" e "árbitro entre as instituições do Estado", mantém dois poderes supremos: o de nomear ou confirmar nomeações (de tudo e de todos) e o de não ser questionado.

"O meu país pertence-me", dizia Hassan II. "A César o que é de César. Mohammed VI não foi o instigador do sistema de predação real", escrevem os jornalistas. Foi Hassan II que em 1980 adquiriu a holding ONA (Omnium Nord-Africain) para através dela comprar várias empresas públicas, beneficiando da liberalização da economia que o próprio ordenara. Para Hassan II, lê-se em Le Roi Prédateur, "a ONA era o meio de obter um poder político que, absolutismo monárquico oblige, se exprimia até no campo económico". Para M6, passou a ser um meio para "obter benefícios a qualquer custo".

A maior operação

Para contar toda esta história são precisas 216 páginas. Saltemos assim para 2010, ano em que M6 decidiu fundir a ONA com a nova holding que entretanto adquirira, a SNI (Sociedade Nacional de Investimento). Escrevem os franceses que "o banco que acompanhou a operação, a mais importante de sempre na bolsa marroquina, não menciona uma só vez, num relatório de 150 páginas, que envolve duas entidades do rei". Pormenores. Como o facto de ter sido a SNI, com 15 assalariados, a engolir a ONA, com 30 mil.

Outros pormenores: quatro dias depois da cotação das acções "da ONA, da SNI e das suas dezenas de filiais" ter sido suspensa na Bolsa de Casablanca, o banco Al-Maghrib ("ao mesmo tempo banco central e sob influência real") baixou a taxa de reserva obrigatória dos bancos de 8% para 6%, que assim poderiam "emprestar mais facilmente ao novo grupo". Para ajudar, a lei das finanças desse ano "tinha aligeirado o peso dos impostos a pagar em caso de fusão de empresas ou de absorção".

Os jornalistas descrevem como os dois gigantes acabaram sob controlo da Coprapar, uma empresa pequena e desconhecida, propriedade da Ergis, outra holding do rei. Detida em 40% por quatro fundos com sedes em offshores e proprietários desconhecidos, sem um único assalariado, a Copragar "mobilizou 770 milhões de euros para adquirir 37% do capital da SNI".

Com a saída de bolsa, "a nova entidade escapa a todas as regras de transparência; poderá investir onde quiser e criar novas entidades", concluem os autores. Após a fusão, "as raras informações" que filtram do palácio indicam que "o rei controla 70%" do novo grupo.

Ricos e pobres

"Marrocos é o único país do mundo onde ricos e pobres sonham em partir", diz um empresário citado em Le Roi Prédateur. Fazer concorrência ao rei não é possível. Melhor é cair nas reais graças e trabalhar com e para o monarca.

Entre as várias histórias de ascensão e queda contidas em Le Roi Prédateur, surge a de Khalid Oudghiri. Foi o banqueiro mais poderoso do país e acabou condenado a 15 anos de prisão por corrupção. O seu crime, segundo os autores, foi ter proposto um plano para desvincular as empresas do rei da economia.

O politólogo Mohamed Darif conta que, entretanto, Khalid Oudghiri foi "agraciado pelo rei". "Mas fez as declarações para o livro antes da amnistia."

"Há muitas informações em Marrocos sobre os projectos económicos do rei. Mas se falarmos da maioria da população, bem, um marroquino não pode imaginar um rei que não seja rico", afirma Darif. "E não podemos esquecer-nos que milhares de marroquinos pedem privilégios ao rei. Às vezes, o rei financia projectos ou concede privilégios com o seu próprio dinheiro."

O problema, segundo Le Roi Prédateur, é que grande parte do dinheiro de M6 - que, para além da fortuna pessoal e de um salário de 30 mil euros, recebe 31 milhões de euros do orçamento para redistribuir em "subvenções do rei e da corte", 6 milhões por ano para o parque automóvel ou 2 milhões para roupas - só foi obtido graças à sua posição de rei.

Mon TGV

Apesar das reformas postas em prática por M6, da nova Constituição e das legislativas de Novembro (que levaram pela primeira vez ao poder uma formação islamista, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento), Darif descreve uma contestação social como não há memória. "Há uma grande vaga de greves, em todos os sectores estratégicos, da Educação à Saúde, e tem havido manifestações em quase todas as cidades [do país]."

Do despertar marroquino surgiu até um movimento contra o plano para ligar Casablanca a Tânger por TGV. "Estão a pedir que seja revisto e toda a gente sabe que é um projecto do rei", diz Darif. A acreditar em Laurent e Graciet, mais que um projecto, o TGV é um "capricho real" do qual M6 dificilmente abdicará.

Considerando que "este não é o projecto mais prioritário para o desenvolvimento do país", o Banco Europeu de Investimento recusou subsidiar a ligação. M6 não se deu por vencido e virou-se para os franceses, acenando com a possível compra de jactos Rafale. "Mohammed VI queria o seu comboio de alta velocidade. Ponto final", resume um banqueiro que acompanhou o dossier.

As obras foram inauguradas em Setembro, na presença do Presidente Nicolas Sarkozy. Faz sentido: entre a Agência Francesa de Desenvolvimento, a Reserva para os Países Emergentes e o FASEP (fundos de ajuda ao sector privado), "o capricho de Mohammed VI custou perto de mil milhões de euros aos contribuintes franceses", lê-se em Le Roi Prédateur. "Se ao menos Mohammed VI consagrasse tanta energia a financiar a construção de escolas e hospitais no seu reino..."

Trabalho humanitário

Quando subiu ao trono, em 1999, Mohammed VI recebeu o título oficioso de "rei dos pobres". São pelo menos 18% os pobres em Marrocos, país que o PNUD (agência das Nações Unidas para o Desenvolvimento) coloca no 126.º lugar (em 177 países) no índice de desenvolvimento humano e onde cinco milhões vivem com dez dirhams, ou menos de um euro, por dia.

O "rei dos pobres" vai acumulando, de facto, projectos humanitários e de desenvolvimento social. Na maioria dos casos, fá-lo através da Fundação Mohammed V. O que o livro Le Roi Prédateur revela é que esta fundação vai buscar grande parte do seu financiamento ao selo editado anualmente pelos Correios, "um verdadeiro desvio de fundos públicos em benefício de uma operação de marketing". Perdem os Correios, estruturalmente deficitários, e os empresários que, "sem escolha", compram os selos reais.

"Em Marrocos, quando há um preço a pagar, cabe ao Governo; quando há uma homenagem a receber, é o rei que beneficia", diz um responsável do aparelho do Estado, citado pelos autores franceses.

Para o exemplificar, os jornalistas contam em seguida como a ajuda às vítimas do terramoto que em 2006 matou 600 pessoas em Hoceima, no Norte de Marrocos, foi atrasada durante 24 horas para permitir à Fundação Mohamed V "ser a primeira a colocar ajuda no terreno".

Segundo Catherine Graciet e Éric Laurent, já o ministro do Interior, Driss Jettou, estava no aeroporto a coordenar os socorros, quando o presidente da fundação real "lhe ordenou que parasse tudo".
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