Violência doméstica: “Não está nas mãos das vítimas mudar o agressor”

A maior parte das condenações de agressores conjugais resultam em penas suspensas. Essas penas, se não forem acompanhadas de outras medidas, como a frequência de programas de tratamento, podem ser um factor de risco, diz especialista.

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Carina Quaresma: "As vítimas são mais colaborantes no processo criminal quando é possível dar-lhes uma grande atenção e quando se sentem mais acompanhadas" Enric Vives-Rubio

Carina Quaresma é psicóloga clínica desde 2001 e técnica superior do Ministério da Administração Interna (MAI). Trabalha na área da violência doméstica desde 2007. Diz que "a violência doméstica é dos crimes mais difíceis de investigar”. A obtenção de prova depende muito do testemunho da vítima, que durante a investigação opta muitas vezes por ficar em silêncio. Para colaborar, precisa de se sentir segura.

Nesta entrevista, Carina Quaresma fala na qualidade de investigadora e de autora da tese de mestrado Violência doméstica: Da participação da ocorrência à investigação criminal, publicada em 2012, e não enquanto representante do MAI.

A violência doméstica – incluindo violência sobre crianças e idosos – é o segundo crime mais reportado em Portugal (o primeiro é o furto no interior de veículos) e representa cerca de 8% de toda a criminalidade registada em Portugal. “Tem esta elevada importância”, diz Carina Quaresma. "Existe um padrão evolutivo da violência que começa por ser psicológica, depois passa a ser física, e depois sexual”. Esse padrão "reforça a ideia de que, na sociedade, temos que ser cada vez menos tolerantes com a violência psicológica, porque muitas vezes tudo começa por aí”.

A violência doméstica está mais presente na sociedade ou apenas mais visível?
Para sabermos se o fenómeno está a aumentar ou a diminuir, não podemos ficar apenas pelo número de participações à polícia [cuja tendência foi para um aumento desde 2000]. Temos que conjugar esses dados com os inquéritos à população em que se pergunta directamente às pessoas se foram vítimas de algum crime, neste caso, de violência doméstica. No último inquérito realizado em Portugal em 2007 foi feita uma análise comparativa com os dados do anterior inquérito de 1995. E constatou-se que o fenómeno não estava a aumentar. Estaria até a diminuir. Eram bons sinais. Um aumento das participações não correspondia ao aumento real da violência, mas a uma maior visibilidade. E talvez a um maior crédito dado às autoridades.

Não se pode então concluir que estamos perante um aumento da violência doméstica?
As participações têm tido oscilações. Entre 2013 e 2014, houve uma estabilização completa, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, depois de um grande aumento desde os anos 2000, em diante, até 2010 e 2011. Esse aumento teve a ver com a legislação. Em 2000, tornou-se crime público. Em 2007, o Código Penal introduziu o crime da violência doméstica, houve uma tipificação autónoma deste crime. Em 2009, foi criada a Lei da Violência Doméstica. São grandes marcos. A Lei da Violência Doméstica trouxe novidades em relação à intervenção que é feita, com a criação do estatuto de vítima, a teleassistência às vítimas, a vigilância dos agressores. São questões-chave que foram trazidas com esta lei de 2009 e que têm vindo a ser consolidadas.

Chegados a este ponto, o que de novo deveria ser introduzido na lei?
As vítimas da violência doméstica são complexas. Requerem atenção e uma intervenção especializada. É fundamental termos uma intervenção integrada junto destas vítimas, para que se sintam o mais possível acompanhadas ao longo do processo. Está provado que as vítimas são mais colaborantes no processo criminal quando é possível dar-lhes uma grande atenção e quando se sentem mais acompanhadas. Alguns estudos, não em Portugal, demonstram que quando as vítimas são apoiadas, a probabilidade de acusação é muito maior.

Esse apoio devia estar na lei de forma expressa?
Estar na lei, está. Existe a rede nacional de apoio às vítimas. Talvez, na prática, as coisas tenham que ser reforçadas. O que acontece é que as vítimas tendem a chegar à fase de inquérito ou de julgamento, e muitas delas calam-se. Por medo de represálias, medo de perder a casa, medo do agressor. Ou porque têm crianças e querem evitar as questões complicadas da regulação do poder paternal, da separação. E há uma outra questão muito importante e que não é muito falada: a dependência emocional de muitas destas vítimas face ao agressor. Estas pessoas estão, muitas vezes, na esperança de que aquela pessoa mude. E dão mais uma oportunidade. Estas vítimas são muito ambivalentes. Num primeiro momento querem ajuda para parar a violência, mas não estão logo motivadas para contribuir para uma condenação ou uma acusação do agressor.

Nalguns casos, pensam que o problema vem delas?
Muitas vezes, as vítimas mantêm-se numa relação e pensam que o problema é delas. Nesses casos, não há essa consciência de que a responsabilidade de toda a violência é daquele agressor. Acreditam que, por vezes, são elas que provocam, porque não fizeram tudo o que era suposto, porque irritaram o agressor. Algumas pessoas têm este tipo de pensamento. E isso contribui para que tentem mudar alguma coisa, quando o problema não está nelas, mas na pessoa que as agride. Não está nas mãos das vítimas mudar o agressor. Está nas mãos delas mudar algumas estratégias para se protegerem. Além disso, nas situações de violência doméstica, na maior parte das vezes, quando há alguma saída de casa, é quase sempre da vítima.

A não ser que haja uma medida de afastamento ou de prisão preventiva aplicadas pelo juiz de instrução.
Sim. E também há situações de vítimas que saem num primeiro momento, vão para uma casa de abrigo ou de familiares, até ao momento em que são decretadas medidas de coacção ao agressor, e depois voltam para casa. Esta questão merece uma reflexão.

E merece uma alteração à lei?
Não sei se isso implicará alterações na legislação actual ou não. A legislação já permite que sejam aplicadas essas medidas de afastamento. Outros países adoptaram medidas mais proactivas neste domínio, dando poderes às polícias para afastarem os agressores. São as “go-orders” em que a polícia pode determinar que aquele agressor saia de casa. Acontece nalgumas partes da Alemanha e em Inglaterra e País de Gales. São ordens de afastamento temporário adoptadas de forma mais ágil pela polícia, até uma decisão do Ministério Público (MP) ou do juiz de instrução.

Em Portugal, essa possibilidade está excluída?
No nosso ordenamento jurídico, não é possível que as polícias tenham este tipo de intervenção. Essas medidas mais gravosas para um agressor são decretadas por um juiz. É uma tradição nossa, que temos que respeitar. O MP propõe, o juiz determina. Mas por outro lado, devemos ver como o nosso sistema está a lidar com a situação e estar atentos a essas experiências nos outros países. Não para as importarmos directamente, mas para que sejam fonte de inspiração para percebermos qual o caminho, e vermos o que é ainda possível afinar.

A queixa à polícia pode ser um factor de risco para a vítima?
Sim. O agressor pode retaliar, pode ameaçar, ao pensar que a vítima os desafiou. Para outros, poderá servir como um travão, como um sinal vermelho, ao sentirem que há uma autoridade que está atenta à situação.

A probabilidade de uma queixa por violência doméstica resultar numa acusação é baixa. Porquê?
Os dados da Direcção-Geral da Administração Interna apontam para taxas de arquivamento acima dos três quartos. A maior parte desses arquivamentos resultará da falta de prova. E esta questão tem muito a ver com a colaboração das vítimas. Apesar de ser muito importante que seja recolhido o máximo de provas possível junto de vizinhos, familiares, que sejam realizadas perícias, muitas vezes, o testemunho da vítima acaba por ser central. A violência doméstica é dos crimes mais difíceis de investigar porque a obtenção de prova é das mais complicadas e depende muito da vítima.
 
Por outro lado, quando há condenações elas resultam na grande maioria em penas suspensas de prisão. É um factor de risco adicional para quem denuncia o agressor?
Quando um julgamento é realizado, a maior parte gera uma condenação. E a maior parte das penas decretadas é a pena suspensa. Porque aqueles agressores serão primários. A própria moldura penal do crime de violência doméstica [de um a cinco anos] acaba por encaminhar decisões dos juízes nesse sentido e a maior parte acaba por ser pena suspensa. Essas penas, se não forem acompanhadas de outras medidas acessórias, de frequência de programas de tratamento ou de afastamento da vítima, podem ser um factor de risco. É importante reflectirmos sobre isto: a maior parte das situações é arquivada e as condenações resultam, na grande maioria, em penas suspensas. Mas eu não gostaria de passar a mensagem de que tudo o que acontece no sistema de justiça é um perigo para a vítima.

Essa questão motivou recentemente um projecto de alteração ao Código Penal, já aprovado na generalidade, que torna obrigatória, entre outras coisas, a vigilância dos condenados com pena suspensa. Outra das formas de resolver essa questão seria alterar a moldura penal?
O problema não é aumentar a pena. É afinar os procedimentos, perceber se a vítima vai ficar em segurança ou não. Ver se para além da pena suspensa é preciso decretar outras medidas para manter aquela pessoa em segurança. Essa é a questão crítica. Por isso digo que o acompanhamento das situações é fundamental.

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