Não houve crime, disse o TEDH

O segredo profissional dos advogados é um bem essencial.

O processo de aquisição dos submarinos pelo Estado português faz parte daquele conjunto de eventos nacionais cuja vertente criminal é evidente e, no entanto, nada se apura de concreto apesar de anos e anos de investigações. Como nos casos dos subsídios do Fundo Social Europeu que terminaram com prescrições e arquivamentos ou ainda da central de compostagem da Cova da Beira.

Esta frustração em investigações criminais com impacto mediático origina, muitas vezes, na opinião pública um desejo de obter resultados a qualquer custo, em nome de valores como a descoberta da verdade e da realização da justiça, esquecendo outros valores e direitos que, numa sociedade democrática, têm também de ser tomados em conta como o princípio da presunção de inocência, do respeito da dignidade humana ou da privacidade. O desejo de obter resultados, mesmo que falseados, leva inclusive à defesa e à prática da tortura como foi o caso recente nos Estados Unidos na guerra ao terrorismo numa página negra da história daquela democracia.

As tentações da investigação criminal de torcer a lei à custa dos direitos dos cidadãos é uma tentação permanente e cabe aos advogados combatê-la. Foi exactamente uma questão deste tipo que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu ontem numa queixa apresentada pela sociedade de advogados “Sérvulo & Associados”.

No dia 29 de Setembro de 2009, tinham entrado pelo escritório da referida sociedade, uma juíza de investigação criminal e uma procuradora da República, munidas de um mandado de busca e apreensão no âmbito do processo criminal respeitante à compra dos submarinos. Aquela sociedade de advogados tinha sido contratada pelo ministério da Defesa Nacional para prestar apoio jurídico naquele negócio e o ministério público e o juiz do tribunal central de investigação criminal entendiam que naquele escritório existia documentação necessária à investigação.

Resulta da lei que as buscas e a apreensão de documentos em escritórios de advogados têm de respeitar uma série de restrições já que está em causa o segredo profissional destes e a confiança dos cidadãos no sistema de justiça de que os mesmos fazem parte. A juíza decidiu apreender uma série de documentos em papel e em suporte informático, seleccionados estes através de uma busca utilizando palavras-chave como contrapartida ou financiamento. Um dos advogados da sociedade, de imediato, apresentou uma reclamação invocando e bem, que algumas das palavras-chave eram de uso frequente na prática negocial e susceptíveis, assim, de provocar uma apreensão injustificada de documentos, violando a lei e a Constituição.

A juíza em causa ordenou, então, a selagem dos documentos apreendidos e a remessa dos mesmos para o Tribunal da Relação para aí ser decidida a reclamação. E a decisão não foi favorável ao escritório de advogados por se ter considerado não ser excessiva a apreensão e ordenado a devolução dos documentos apreendidos ao juiz de instrução criminal. A investigação neste processo transformara, também, em arguido um advogado, sem qualquer justificação como o veio a reconhecer o Tribunal da Relação, mas dessa forma conseguira-se a apreensão de documentação igualmente protegida pelo segredo profissional. Verdade seja dita que esta documentação veio a ser devolvida mas parte da documentação devolvida pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao juiz de instrução, veio a ser incorporada noutros processos-crime relacionados com a aquisição dos submarinos.

A sociedade de advogados em causa como era seu dever apresentou uma queixa no TEDH por considerar ter sido violado injustificadamente o direito ao respeito da vida privada, do domicílio e da correspondência de clientes, dos advogados e da sociedade. O objectivo desta queixa era, claramente, de interesse público: garantir uma protecção adequada dos direitos de privacidade e da defesa em processos-crime, direitos que assistem constitucionalmente à generalidade dos cidadãos, e exigem um especial cuidado na forma como as diligências de busca e apreensão são conduzidas em escritórios de advogado.

Mas o TEDH considerou que, apesar de tudo, esses direitos e garantias dos clientes, dos advogados e da sociedade tinham sido respeitados na actuação dos tribunais portugueses nomeadamente porque a juíza de instrução não tinha visto a documentação em causa e a tinha remetido selada para o Tribunal de Relação e que este a analisara e considerara justificada a apreensão.

Procurou a sociedade de advogados mostrar que, embora formalmente tivessem sido respeitadas as garantias, o risco de acesso e de utilização indevida de documentação protegida pelo segredo profissional existira de forma evidente mas o TEDH não lhe deu razão e considerou que Portugal não violara direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Só um juiz votou vencido com uma longa e bem elaborada declaração de voto.

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