O novel PS de António Costa e a sua eventual inflexão à esquerda

Tanto pode haver uma vontade de virar à esquerda como um desejo de ganhar a esquerda para chegar ao governo a solo. Seja como for, é uma grande diferença face ao que se passava no PS sob a batuta de Seguro.

Embora com a dose de ambiguidade que permite aos líderes dos grandes partidos com vocação governamental, e/ou aos políticos mais experientes, manterem abertas as várias portas que poderão ser necessárias para vários futuros possíveis..., o novo homem do leme do PS, António Costa, tem dado vários sinais de, por um lado, querer dessacralizar a “vaca sagrada” (para os grandes interesses económicos, os políticos que circulam entre o poder político e as grandes empresas económicas e financeiras, os jornalistas mainstream, entre outros) do “arco governamental” (ou seja, que a governação só pode acontecer com o PS e os partidos situados à sua direita) e, por outro, mostrou abertura e vontade para entendimentos com os partidos à sua esquerda. É claro que também declarou que o objetivo do PS é obter uma maioria absoluta nas legislativas de 2015, até porque, numa estratégia inteligente de “tranquilização” dos eleitores mais propensos a coligações do que a governos de um só partido, mesmo com ela o seu desiderato será sempre obter entendimentos alargados com as forças políticas no Parlamento e com os vários interesses sociais organizados, sindicais (CGTP incluída) e empresariais.

Claro que aqui tanto pode haver uma vontade de virar à esquerda como um desejo de ganhar a esquerda para chegar ao governo a solo. Seja como for, é uma grande diferença face ao que se passava no PS sob a batuta de Seguro (A.J.S.), seja nas palavras, seja nos atos (recordemos, por exemplo, que o entendimento de médio-longo prazo em sede fiscal, IRC e IRS, foi já denunciado pelo novel PS porque as reduções fiscais vão todas para os patrões e pouco ou nada para os assalariados, ao contrário até do que estaria acordado). Claro que há em tudo isto quer uma vontade de divergir da direita no poder, das políticas neoliberais apresentadas como “o único jogo (permitido) na cidade”, quer uma inteligente estratégia eleitoral para encurralar a esquerda radical obrigando-a ou a assumir o poder (com os custos que isso sempre pode ter, sobretudo para os mais pequenos) – “saindo da zona de conforto do protesto de quem nunca tem que mostrar o que vale” governando – ou a correr o sério risco de, por recusar o “pedido de noivado” do PS, ser trucidada nas urnas pelos (seus) eleitores de esquerda (sempre muito mais afoitos a entendimentos à esquerda do que as elites dirigentes dos seus partidos, seja no PS, seja no PCP ou no BE – uma décalage entre representantes e representados que é uma das razões da crise política portuguesa). É uma questão em aberto saber se a esquerda radical aceita correr tais riscos e concede no noivado, ganhando assim também maior influência na política portuguesa, ou cai na armadilha e Costa poderá dizer aos eleitores que precisa mesmo de uma maioria absoluta, para não ter de se aliar à direita, por falta de parceiros “para o tango” à esquerda. É isso que ele tem feito na Câmara de Lisboa: coligou-se com o BE e os “Cidadãos por Lisboa” (CPL), a seguir às intercalares de 2007, mas pouco depois o BE “roeu a corda”... Nas autárquicas de 2009, apesar de tudo, continuou a demonstrar pública e reiteradamente a vontade para se entender (governativamente falando) com a esquerda radical (PCP e BE). Esta recusou liminarmente e, perante tal indisponibilidade, no final o eleitorado das esquerdas devolveu a Costa e ao PS (com o CPL e outro movimento equivalente também na lista pré-eleitoral) uma maioria absoluta (para o executivo camarário). Terá a esquerda radical memória e clarividência para não cair duas vezes na mesma armadilha? É uma questão em aberto, mas é caso para dizer que o destino (da esquerda radical) está nas suas próprias mãos...

Mas afinal o que é que tem inviabilizado entendimentos à esquerda? Nos tempos da Guerra Fria, quando a URSS era ainda um farol dos regimes do “socialismo realmente existente”, refira-se que a falta de entendimentos entre o PS e o PCP (e satélites) não era propriamente incomum. Depois de 1947, tirando a França, a Finlândia e a Islândia, não encontrávamos comunistas nos governos nacionais da Europa Ocidental. É certo que, com o eurocomunismo, havia sinais de mudança potencial no horizonte, mas de facto, tirando os países referidos, a realidade ainda não traduzia tal potencial... Por cá, era o PCP que mais pedia coligações à esquerda e o PS que as recusava. O trauma do PREC, e do esboço de uma tentativa revolucionária de tomada do poder, bem como a ortodoxia do PCP (sempre muito longe do eurocomunismo), junto com a pujança relativa do PCP (em termos eleitorais e organizacionais), muitíssimo maior do que a que tem hoje, levaram o PS a preferir alianças à direita. Por exemplo, no caso do “bloco central”, 1983-85, ou da recusa de uma coligação PS-PRD (com apoio parlamentar do PCP), em 1987, pela mão do Presidente Mário Soares. Após a queda do Muro de Berlim, parece ser sobretudo a esquerda radical (hoje mais diversa do que naqueles tempos) que é menos propensa a alianças com os socialistas, agora em clara divergência com a Europa Ocidental (onde as coligações de esquerdas são hoje bastante comuns). Recentemente, Manuel Loff (M.L.) resumiu alguns dos seus argumentos: porque o PS nunca teve uma base operária, nem sindical; porque o PS se rendeu ao social-liberalismo da terceira via; porque o PS foi muito longe no afã privatizador; porque o PS, em suma, não é propriamente um partido de esquerda. Bom, tirando este último ponto (em que discordo frontalmente de M.L.) – todos os estudos sobre posicionamento político-ideológico demonstram o contrário, apesar de também evidenciarem um crescente centrismo no PS, 2005-presente data –, tudo o resto é certo, é histórico, é factual. Porém, M.L. (e os críticos da sua linha) esquecem três coisas muito importantes. Primeiro, os contributos fundamentais do PS (e também de um certo PSD) para a construção do Estado social que temos (escola pública e universidades, SNS, Segurança Social). Segundo, todos os estudos sobre posicionamento ideológico de partidos versus eleitores demonstram que é a esquerda radical que está significativamente mais afastada dos seus constituintes (com os partidos e os deputados sistematicamente mais à esquerda do que os seus eleitores) e não o PS. Ou seja, tal como aliás demonstram a força (eleitoral) relativa do PS face à esquerda radical, é o PS que está mais sintonizado com o eleitorado, quer em geral, quer com o eleitorado partidário, em particular (ver A Esquerda Radical em Portugal e na Europa: Marxismo, Mainstream ou Marginalidade?, Porto, Quid Novi, 2012). Portanto, pelo menos no cenário atual e como bem lembrou José Vítor Malheiros, sem o PS lá não há governo de esquerda em Portugal. A não ser que M.L. queira “mudar de povo”. Terceiro, mas não menos importante, uma das razões da deriva centrista do PS é também a sua política de alianças, em parte determinada pela indisponibilidade da esquerda radical para alianças governativas.           

E afinal porque é que é importante uma nova política de alianças para o PS, para a esquerda radical e para Portugal? Primeiro, há razões conjunturais: porque é preciso recusar, com firmeza e clareza, as políticas radicalmente neoliberais dos atuais detentores do poder, bem como a sua governação sem mandato político democrático, aliás com péssimos resultados. Neste aspeto, a estratégia de Costa parece-me a mais adequada. Segundo, há razões estruturais: a necessidade de uma maior clareza entre as alternativas políticas de governo, a necessidade de ser mais inovador e inclusivo na formação dos executivos, a necessidade de uma forte maioria de esquerda para se poderem contestar as fortes pressões neoliberais vindas da Europa. Mas não haja ilusões, não vai ser tarefa fácil. Primeiro, pelas dificuldades de entendimento entre as esquerdas (neste aspeto a plataforma liderada pelo Partido Livre, a Fórum Manifesto e a Renovação Comunista – e que pessoalmente apoio! – pode ser um veículo facilitar de entendimentos entre PS, BE e PCP). Segundo, porque a pressão europeia para a convergência vai ser e já é brutal. Terceiro, porque os poderes fácticos no jornalismo mainstream, no sistema económico, etc., farão tudo o que estiver ao seu alcance para evitarem entendimentos à esquerda. Basta ver o relevo que, por exemplo, o Observador deu aos “socialistas de direita” que se puseram nas pontas dos pés mal Costa sinalizou a vontade de infletir à esquerda... Porém, seria crucial para Portugal e até, atrevo-me a dizer, para tentar criar um novo rumo na Europa.

Politólogo, ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)

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