O fetiche do consenso e o quadro político nacional

Aníbal Cavaco Silva, de há uns tempos a esta parte, parece cultivar o fetiche do consenso. Não há discurso em que o não reclame.

1. Este ano, mau grado o governo ter acabado com o feriado, tivemos um 5 de Outubro especial. A República, apesar de tudo, está viva.

Cavaco Silva foi à Câmara de Lisboa dirigir um recado ao seu anfitrião, recém-eleito líder do PS; Marinho e Pinto anunciou, entre a indignação e a euforia, a criação de um novo partido de ambiciosa aspiração democrática e republicana; Rui Tavares acolheu no congresso do seu partido o novel líder da oposição e aproveitou o ensejo para declarar publicamente a vontade de participar numa nova maioria política formada em torno do Partido Socialista; o governo prosseguiu a sua marcha para o precipício e Jerónimo de Sousa, a ter falado, terá repetido a estranha tese de que afinal de contas o mundo não se move. Nas suas tumbas, os velhos republicanos teriam motivos para sorrir. Na verdade tudo isto faz parte do jogo democrático.

Aníbal Cavaco Silva, de há uns tempos a esta parte, parece cultivar o fetiche do consenso. Não há discurso em que o não reclame atribuindo-lhe todos os méritos e reputando o mesmo de indispensável para a resolução dos problemas nacionais. Paradoxalmente, tendo razão, Cavaco prejudica o objectivo para que essa razão aponta. E tudo isso por um único motivo: ao fim de quase 30 anos de forte intervenção política, o Presidente da República teima em conceber-se a si próprio como um expatriado desse território. É quase um problema de topografia. Cavaco, o imaculado, coloca-se num plano alheio ao mundo da confrontação político-partidária. Essa obsessão por uma espécie de pureza original retira seriedade aos propósitos que prossegue e denuncia a insuficiência da sua cultura democrática. Há um misto de pretensão tecnocrática e ilusão populista neste comportamento que releva em grande parte de uma concepção pré-democrática da organização social e política. Espíritos mais simples poderão ceder à tentação de acreditar num estereotipado discurso de inequívoco pendor anti-partidário. Tomarão até por seriedade e coragem aquilo que não passa uma vulgar contestação a princípios essenciais de pluralismo doutrinário e confrontação democrática. Claro que num País com deficiente tradição liberal este tipo de retórica não deixa de surtir os seus efeitos. É justamente por isso que é especialmente importante denunciá-lo. Significa isto que haja escassez de razão no anúncio da necessidade de alguns entendimentos de fundo na vida política portuguesa? Obviamente que não. Só que há que distinguir a forma e o meio da substância da questão. O limite do discurso de Cavaco Silva consiste na essência inconscientemente pré-democrática e pré-liberal que o caracteriza. O consenso a alcançar pressupõe uma outra abordagem do quadro político nacional.

António Costa deu sinais de o perceber ao participar no congresso do partido de Rui Tavares. Com a ambiguidade que caracteriza os políticos que não levam a sinceridade ao ponto de dissolver a inteligência, fez o discurso que se impunha. Enalteceu o pluralismo, insinuou críticas à esquerda dogmática, apelou à responsabilidade política e proclamou a necessidade de emergência de uma alternativa. Contrariamente ao que uma leitura epidérmica poderia fazer supor, ao dar este passo, António Costa não pôs em causa qualquer perspectiva futura de entendimento político sério com formações políticas situadas à direita. Pelo contrário, nesse inusitado congresso, que merece aliás ser saudado pela abertura que exibiu, António Costa estabeleceu uma fronteira política à esquerda. Ora isso constitui a condição imprescindível para explorar possíveis entendimentos mais à direita. Como é óbvio, tudo isto vai depender dos resultados eleitorais.

Em Coimbra, a proclamada cidade do conhecimento, coisa que aliás se verifica desde os tempos remotos da escolástica, Marinho e Pinto apresentou ao País a novidade do seu projecto político regenerador. Confesso que não é fácil falar desta personalidade. Apesar dos seus excessos populistas é um homem com um fundo doutrinário sólido e claramente identificado com os princípios e valores da esquerda europeia. Sou dos que acredita no carácter genuíno das suas pulsões, embora deplore muitas das suas considerações. Curiosamente revela qualidades quando avança com objectivos programáticos e evidencia defeitos quando se dispersa em delirantes considerações abstractas. Até agora a sua intervenção política só teve um efeito prático notório: contribuiu decisivamente para afastar António José Seguro da liderança do Partido Socialista. Talvez por isso, por má consciência, use uma linguagem imprópria para se referir a António Costa. Se prosseguir por esse caminho pagará caro o erro.

Em que País europeu a Ministra da Justiça e o Ministro da Educação não estariam já demitidos depois das burlescas complicações em que se envolveram? O governo definha a cada minuto que passa. Será por isso mesmo que Paulo Portas insinua publicamente novas divergências irredutíveis. À vista de todos o Governo caminha para o abismo. Estes últimos tempos têm lembrado esses outros tempos de Santana Lopes, mas sem o talento, a originalidade e até mesmo a qualidade desse antigo Primeiro-Ministro. O que já teria feito o Presidente da República, a que manifestações de genuína indignação se teria entregado se tudo isto tivesse acontecido com os governos de José Sócrates? Por muito menos Cavaco Silva proferiu o vergonhoso discurso da sua tomada de posse há três anos atrás. Retomando a questão inicial, é por isso mesmo que o Presidente da República quando fala em consensos tem apenas o condão de os prejudicar. E é publicamente sabido que sou favorável a um entendimento de fundo entre o PS e o PSD, mesmo que o Partido Socialista obtenha maioria absoluta nas próximas eleições legislativas.

2. Soube há poucos instantes que António José Seguro renunciou ao seu mandato de Deputado na Assembleia da República. Fez bem. A forma como tem agido desde o dia 28 de Setembro realça o seu carácter de homem livre e digno.

3. Adensa-se o Outono nas ruas do Porto. Já não são só os pássaros nem as árvores nem o sol. Vislumbra-se no rosto das pessoas. Gosto do Outono, da melancolia sábia que transporta consigo. A Primavera é uma estação democrática, os seus prazeres estão ao alcance dos espíritos mais vulgares; o Outono é diferente, prenúncio do Inverno, nele se concentra a verdadeira celebração da vida.

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