Ensaio clínico de medicamento contra o cancro vê os tumores desaparecerem em 100% dos pacientes

Investigadores na área do cancro colorrectal destacam o estudo, publicado, no domingo, na revista New England Journal of Medicine, como uma descoberta inovadora que poderá abrir caminho a novos tratamentos para outros tipos de cancro.

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Estudo sobre cancro rectal foi publicado na revista científica New England Journal of Medicine Memorial Sloan Kettering Cancer Center/TWITTER

Um pequeno ensaio clínico está a ter um impacto sísmico no mundo da oncologia: após seis meses de um tratamento experimental, os tumores desapareceram em todos os 14 pacientes diagnosticados com cancro rectal em fase inicial que participaram no estudo até à data da sua publicação.

Investigadores na área do cancro colorrectal destacam o estudo, publicado, no domingo, na revista científica New England Journal of Medicine, como uma descoberta inovadora que poderá abrir caminho a novos tratamentos para outros tipos de cancro.

“Penso que ninguém viu isto antes, em que todos os pacientes viram o tumor desaparecer”, diz Andrea Cercek, uma oncologista do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova Iorque, e principal autora do estudo.

Todos os pacientes com cancro rectal partilhavam a mesma instabilidade genética e ainda não tinham sido submetidos a tratamento. Cada um recebeu nove doses de dostarlimab intravenoso, um medicamento relativamente recente concebido para bloquear uma proteína celular cancerígena específica, que, quando se expressa, pode fazer com que o sistema imunitário retenha a sua resposta para combater o cancro.

Após seis meses, exames que outrora mostravam tumores nodosos e descoloridos revelaram, em vez disso, tecido liso e cor-de-rosa. Não foram detectados vestígios de cancro nos exames, biópsias ou exames físicos.

“Todos os 14 pacientes? As probabilidades são extremamente baixas e realmente inauditas em oncologia”, afirma Andrea ​Cercek.

“Está a impressionar toda a gente”

Os resultados foram tão bem sucedidos que nenhum dos 14 pacientes que completaram o ensaio clínico necessitou do tratamento seguinte que estava planeado de químio e radioterapia ou cirurgia. Também nenhum paciente teve complicações significativas após tomar o medicamento. Quatro outros pacientes do ensaio clínico ainda estão em tratamento, mas até agora estão a mostrar os mesmos resultados promissores.

Sascha Roth, a primeira paciente a entrar no estudo experimental em finais de 2019, sabe em primeira mão quão importantes são os resultados, mas diz que desde que a notícia foi divulgada, no domingo, ela e a sua família estão a começar a compreender que o estudo teve um impacto mais abrangente.

“O meu primo de Bruxelas disse que saiu no jornal de lá”, explica Sascha Roth. “Está a impressionar toda a gente.”

Os resultados apontam para uma opção promissora no tratamento do cancro rectal, que pode muitas vezes deixar os doentes com sequelas que afectam a sua vida.

Embora o cancro rectal tenha uma elevada taxa de sobrevivência quando é tratado nas suas fases iniciais, os tratamentos tradicionais mais eficazes de radioterapia, quimioterapia e cirurgia podem também deixar os pacientes com disfunções permanentes do intestino e da bexiga, disfunções sexuais e infertilidade. Para as mulheres mais jovens, o tratamento pode causar cicatrizes no útero, tornando-as incapazes de desenvolver uma gravidez; dependendo da localização do tumor rectal outros pacientes podem também precisar de utilizar permanentemente um saco de colostomia após a cirurgia.

Mas o estudo tem algumas ressalvas: o tamanho da amostra de pacientes, embora diversificado em idade e etnia, era pequeno. E mesmo os primeiros pacientes que participaram no ensaio clínico ainda têm vários anos de observação pela frente para garantir que os tumores não reapareceram ou criaram metástases em qualquer outra parte do corpo. Os resultados também só dizem respeito àqueles que têm uma anomalia específica do cancro rectal que corresponde a uma deficiência nos mecanismos de reparação do ADN, que impede o corpo de normalizar ou “reparar” anomalias quando as células se dividem e, em vez disso, resulta em mutações. Esta anomalia ocorre em cerca de 5 a 10% de todos os pacientes com cancro rectal e tende a resistir à quimioterapia.

“Estamos sem dúvida a assistir a uma afluência de pessoas a telefonarem e a perguntarem: ‘Este medicamento dá para mim?’”, destaca Cercek. “É uma reacção muito emocionante de: ‘Oh meu Deus, eles tinham cancro e agora olhem para eles.’”

“Os tumores derretem como manteiga com este tratamento”

David Ryan, o director de oncologia clínica do Hospital Geral do Massachusetts, salienta que os resultados são decisivos para os doentes com cancro que têm aquela anomalia específica. O estudo foi patrocinado pela empresa de biotecnologia Tesaro — que foi adquirida pela GlaxoSmithKline quando o primeiro paciente começou o tratamento em 2019.

“Isto é muito importante”, afirma Ryan, que não participou no estudo. “Será muito difícil para o próximo paciente que entrar pela porta não pensar nesta opção: ‘Devo fazer quimioterapia e radioterapia ou devo fazer esta imunoterapia?””

Ryan nota que os participantes no ensaio clínico continuarão a ser acompanhados de perto por uma equipa de especialistas que poderão observar possíveis reincidências dos tumores ou a sua propagação e intervir rapidamente com o tratamento, se necessário. O oncologista explica ainda que os pacientes que não vivem perto de locais onde podem aceder fácil e regularmente aos cuidados de saúde de especialistas poderão enfrentar um desafio.

“Preocupa-nos que, se ocorrerem reincidências, elas tenham de ser detectadas o mais depressa possível para dar às pessoas uma melhor hipótese”, acrescenta.

Mas Ryan e Cercek concordam que os resultados do ensaio clínico levantam a possibilidade de que qualquer pessoa com uma anomalia nos mecanismos de reparação do ADN noutros tipos de tumores, como os do pâncreas, estômago ou bexiga, possa ser tratada eficazmente com o mesmo medicamento do estudo de Cercek.

Para Ryan, o estudo também reforça a importância de os doentes com cancro conhecerem o seu estado clínico e tipo de tumor. “Sempre soubemos disso, mas não sabíamos que estes eram os tipos de tumor que respondem eficazmente à imunoterapia e os tumores derretem como manteiga com este tratamento”, afirma.

“Todas as estrelas se alinharam”

Cercek apresentou o artigo, no domingo, na reunião anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, em Chicago. Ela não tinha ainda terminado a sua apresentação de dez minutos quando a sala começou a aplaudir. Suspiros e lágrimas inundaram o público enquanto letras ousadas, brancas e sublinhadas apareceram num ecrã azul com a principal descoberta do seu estudo: “Resposta clínica 100% COMPLETA nos primeiros 14 pacientes consecutivos.” Em termos leigos, era como fazer um touchdown.

Sascha Roth, agora com 41 anos, sente-se igualmente triunfante. A mulher descreve o seu percurso durante o ensino clínico como “bizarro”. “Todas as estrelas se alinharam de uma forma perfeita que me permitiu participar neste ensaio clínico”, explica. “Se eu tivesse feito uma infusão de quimioterapia, isso ter-me-ia desqualificado.”

Roth, que vive em Bethesda, no estado norte-americano de Maryland, e possui uma loja de móveis, foi diagnosticada em Setembro de 2019, quando tinha 38 anos. Tinha tido algumas hemorragias rectais e culpou por elas os anti-inflamatórios que tinha andado a tomar devido ao seu estilo de vida activo, que incluía o ocasional acidente de bicicleta e encontrões no futebol.

“Pensei que me iam dizer que tinha uma alergia ao glúten”, afirma Roth. “Eu não estava definitivamente a antecipar um diagnóstico de cancro.”

A mulher falou com um amigo que tinha sido diagnosticado com cancro colorrectal um ano e meio antes, que a aconselhou: o Memorial Sloan Kettering Cancer Center. Três dias antes de iniciar a quimioterapia na área de Washington, encontrou-se com um médico do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, que, recorda, “atirou a luva para o chão” na sala de exames.

“Ele disse: ‘Em primeiro lugar, não é candidata à cirurgia por causa da localização do cancro'” e também a aconselhou que a quimioterapia — o tratamento usual — não seria uma opção eficaz, dado que ela tinha uma anomalia cancerosa que tende a resistir a esse tratamento.

O médico estava quase certo de que Roth seria uma paciente com síndrome de Lynch ou alguém com uma síndrome de cancro hereditário que está associada a anomalias. O médico de Roth apresentou-a a Cercek e ela tornou-se rapidamente a primeira paciente do ensaio clínico.

Gratidão e esperança

Sascha Roth teria de esperar mais dois meses pela aprovação da agência reguladora do medicamento norte-americana, a Food and Drug Administration (FDA), antes de poder iniciar o tratamento experimental.

A paciente lembra que tinha medo de que o seu cancro pudesse piorar da fase 3 para a fase 4 durante este período de espera. “Mas garantiram-me que o cancro não cresce num dia.”

Sascha Roth foi acompanhada de perto para garantir que era seguro esperar pelo tratamento e mantê-la no ensaio clínico. Iniciou a terapia experimental em Dezembro de 2019. Após a sua primeira infusão, foi de férias para a Florida e diz não ter sentido quaisquer efeitos secundários. Até continuou a correr.

A meio do ensaio clínico, o tumor de Roth estava a encolher visivelmente. Ao fim de seis meses, quando Roth faria a transição para a quimioterapia, recebeu um telefonema de Cercek, numa sexta-feira à noite, a dizer-lhe para cancelar a sua mudança para Nova Iorque. Os investigadores iriam ajustar o ensaio clínico; a quimioterapia — juntamente com a radioterapia ou cirurgia — já não seria necessária, pelo menos por agora.

A família de Roth brinca que ela é um “unicórnio”, um exemplo vivo de um milagre médico. O que Roth sente é gratidão — pelos médicos e enfermeiros e por aqueles que a encorajaram a procurar uma segunda opinião.

Roth também está grata pelos avanços científicos, dada a prevalência do cancro na sua família. O pai de Roth morreu com um tumor cerebral em 1999 e a sua mãe está actualmente nos “últimos dias da sua vida” a lutar contra o cancro. Graças às inovações na área, ela sente-se optimista quanto ao seu próprio futuro.

“Sinto um sentimento universal de gratidão — mas também de esperança pelos outros”, diz. “Esperança para todos os cancros.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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