Europa não é sustentável sem migrações, e que sejam organizadas

António Guterres defende “mega-acordo” entre União Europeia e vizinhos da Síria para receber refugiados e avisa para iminente colapso do projecto europeu.

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Guterres na audição parlamentar desta terça-feira Miguel Manso

Um discurso e uma atitude pedagógicos, uma política de imigração “regular e organizada”, uma Europa mobilizadora da comunidade internacional para resolver o problema na Síria, um aumento da ajuda humanitária coordenada com a ajuda ao desenvolvimento, e uma mega-acordo entre a União Europeia e os países vizinhos da Síria, o ponto de partida de boa parte dos refugiados que têm chegado à Europa no último ano. Esta é a forma para enfrentar e tentar resolver a crise dos refugiados que António Guterres defendeu durante uma audição de 2,5 horas na Assembleia da República esta terça-feira. Mas não será fácil, avisa.

O caderno de encargos é enorme porque o problema é gigantesco e poderá ser apenas a ponta do icebergue que afundará a Europa se nada for feito urgentemente e com uma estratégia global, preveniu António Guterres. Mas, perante os deputados da comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas que ouviram sobre refugiados a pedido do PSD, não deixou de usar o mesmo tom desiludido que já mostrara há semanas no seminário diplomático. Admitiu não estar “seguro de que a Europa seja capaz de fazer tudo isto”. E se continuar a faltar-lhe coordenação para enfrentar o problema dos refugiados serão o sistema europeu de asilo, o espaço Schengen e a construção europeia que poderão estar em causa a curto prazo, avisa.

“Se tudo continuar na mesma vamos ter uma deterioração das condições de recepção dos refugiados na Europa e isso levará ao colapso” – foi o aviso sério repetido por Guterres. Na sua opinião, a “única maneira de encarar isto de uma forma racional” é através de um “mega-acordo” entre a União Europeia e os Estados vizinhos da Síria, nomeadamente Turquia, Líbano e Jordânia, para um “programa de reinstalação na Europa de várias centenas de milhar de pessoas por ano, terminando com a necessidade absurda de as pessoas terem que se meter em barcos em condições terríveis” e debilitando as redes de traficantes e contrabandistas que exploram e enriquecem à custa de quem foge do seu país. O ex-alto-comissário afirmou que esta era uma solução que estava a negociar no final do seu mandato, há poucos meses, quando os refugiados já entravam aos milhares por dia no espaço europeu.

"Federalista convicto"
“Numa perspectiva global e de longo prazo, a Europa precisa das migrações em termos globais e específicos”, defendeu o antigo primeiro-ministro. “O que é dramático é que o discurso europeu sobre as migrações é hoje esquizofrénico e não tem em conta a realidade.” As pessoas não querem ter mais filhos nem imigrantes, empurrando a Europa para uma morte anunciada. É, por isso, fundamental uma “atitude pedagógica para que o debate seja mais tranquilo”.

Guterres vincou que esta crise “revelou uma enorme falta de solidariedade entre os países europeus, ameaçando a coesão”, e a UE mostrou-se incapaz de ser o “catalisador da sociedade internacional para atacar a origem do problema”. Alguns países como que “empurram” os refugiados para os outros países. Afirmando-se um “federalista convicto”, elogiou a Alemanha como sendo a “grande válvula de escape do sistema” e disse temer o que acontecerá se a fronteira alemã se fechar. “Se não fosse a Alemanha a tragédia já tinha acontecido há mais tempo.”

Defendendo que é preciso uma maior solidariedade na ajuda humanitária e ao desenvolvimento e que estes devem andar sempre associados, António Guterres acrescentou ainda outro ponto em que é preciso a união internacional: é necessário convencer os Estados que financiam a guerra na Síria – como EUA, Rússia, Irão, Arábia Saudita, enumerou – que “esta é uma guerra que já ninguém ganha e que o terrorismo é agora ameaça para todos”. Mas isso, admite, “não se fará de um dia para o outro; exige esforço e geometrias variáveis em vários pontos do mundo”.

O ex-alto comissário opõe-se “frontalmente” a qualquer revisão da convenção de 1951 de Genebra sobre o estatuto dos refugiados porque apesar de “algumas limitações ainda é dos melhores instrumentos de direitos humanos à escala internacional”. A questão não é revê-la, mas antes “garantir que seja aplicada”. 

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