Novo plano de recuperação de empresas entre aplausos e interrogações

Solicitadores temem concertação de posições entre os grandes credores nos processos de revitalização. Posição do fisco e da Segurança Social gera dúvidas.

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Pedro Gonçalves, secretário de Estado da Inovação, Investimento e Competitividade Rui Gaudêncio

O novo plano de acção do Governo para aumentar a recuperação de empresas e estimular a reestruturação de dívidas e a recapitalização não é consensual entre as entidades ouvidas durante a consulta pública do documento, que terminou na passada quarta-feira. Se há quem acredite que as alterações aos mecanismos de revitalização vão ajudar a detectar mais cedo as dificuldades financeiras das empresas, há também quem alerte para a perda de ineficácia destes instrumentos.

Para a Câmara dos Solicitadores, a criação do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (Sireve), um mecanismo gerido pelo Iapmei, foi, desde logo, uma iniciativa “controversa”, sendo “na grande maioria das vezes ineficaz” porque, ao tentar revitalizar uma empresa, “acaba por atrasar a sua insolvência, mantendo-a no mercado em condições economicamente difíceis”.

Uma das “sérias dúvidas” manifestada pelos solicitadores tem a ver com os requisitos necessários para se celebrar um acordo com o devedor. O Governo propõe que, para o acordo ser votado, só seja preciso que estejam presentes credores que representem um terço do total das dívidas (desde que dois terços votem favoravelmente). Até aqui, o acordo dependia da manifestação de credores que representassem pelo menos 50% das dívidas da empresa. Para esta associação, a percentagem deveria ser maior, de forma a evitar “concertações entre grandes empresas” (o que pode acontecer, por exemplo, quando a dívida está centralizada em pouco credores).

Já a Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais (APAJ) propõe que seja recuperado um dos artigos eliminados na proposta do Governo. Trata-se da possibilidade, que antes existia no Sireve, de as empresas que recorriam a este mecanismo verem suspenso o prazo de 30 dias para se apresentarem à insolvência. “Este artigo deve ser mantido, sob pena da consequente diminuição da eficácia do Sireve”, refere a associação que representa os administradores de insolvência.

A APAJ propõe ainda que, nas limitações introduzidas à utilização deste mecanismo por parte de empresas declaradas insolventes sejam clarificadas, visto que o Governo propõe que continuem a usá-lo quando a insolvência estiver pendente, podendo essa acção ser suspensa pelo juiz. A associação defende que deverá ser “claro que a suspensão é automática e que não depende de um poder discricionário do juiz”.

A Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CPP) considera as alterações ao Sireve globalmente “positivas”, por limitarem as situações em que as empresas são admitidas a este recurso e porque vai ser possível “sinalizar antecipadamente a existência de dificuldades financeiras”. Para a confederação liderada por João Vieira Lopes parece adequado haver “maiorias para aprovação dos acordos de credores no Sireve” e é também positivo que fique salvaguardada a posição dos credores que não subscreveram o acordo.

Há, no entanto, receios em relação à limitação das situações em que as empresas podem recorrer a este mecanismo de reestruturação das empresas. Se, por um lado, a confederação percebe a “importância de credibilizar este instrumento (limitar o acesso, para melhorar os indicadores de sucesso), por outro, questiona se o Governo não está a ir “longe demais na estratificação dos indicadores” financeiros que as empresas têm de cumprir para recorrer ao Sireve. Uma das dúvidas da CCP é se esses indicadores têm em conta a “heterogeneidade” dos sectores de actividade das empresas.

Já a Associação Portuguesa de Capital de Risco (APCRI), cujo parecer foi elaborado pela Abreu Advogados, critica o facto de o Governo não ter resolvido, definitivamente, os obstáculos colocados pelo fisco e pela Segurança Social à recuperação de empresas que recorrem a um outro mecanismo, o Processo Especial de Revitalização (PER), que corre nos tribunais. “Percebe-se que há interesse em resolver alguns problemas, mas que não houve coragem política para acabar com os bloqueios impostos pelo próprio Estado”, explicou Francisco Patrício. Já no que diz respeito ao Sireve, considerou positiva a limitação do recurso a este mecanismo, já que se proíbe a entrada de empresas insolventes, bem como a existência de um diagnóstico prévio às dificuldades financeiras.

No que diz respeito às alterações ao Código das Sociedades Comerciais, o director executivo da Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado (AEM) explicou que foi feita uma “apreciação global positiva” das propostas do Governo, que estão em linha com “as recomendações que têm vindo a ser feitas” por esta entidade, nomeadamente ao nível do maior recurso à emissão de obrigações. “É um impulso importante para agilizar o financiamento de longo prazo e mais flexível e que facilite a diversificação dos meios de financiamento”, referiu Abel Ferreira. A AEM esperava, no entanto, que fossem dados mais alguns passos em frente, nomeadamente na possibilidade de as empresas emitirem obrigações próprias “para facilitar a sua gestão financeira”.

A Deco criticou o facto de o Governo pretender alargar as competências do Mediador do Crédito, figura criada em 2009, à reestruturação de dívidas, quando até aqui estava limitada à mediação na concessão de financiamento. Carla Varela, jurista da associação de defesa do consumidor, explicou que, apesar de no preâmbulo o Governo referir que se pretende “promover a agilização dos processos de reestruturação de dívida financeira de empresas”, a distinção entre pessoas colectivas e particulares não é feita no interior do diploma.

“Verifica-se que essa competência será alargada nos dois casos, sem haver diferença entre uma realidade e outra, que são completamente distintas”, referiu, acrescentando que, no caso dos particulares, “é preciso ter em conta muitos factores, como a origem das dificuldades financeiras ou o peso das despesas no orçamento familiar”, bem como uma estrutura e recursos do Mediador do Crédito “que não se sabe se existe”.

Este plano de acção, que o Governo quer ver no terreno no primeiro trimestre de 2015, juntou os ministérios da Economia, da Segurança Social e das Finanças, em conjunto com o Banco de Portugal. O secretário de Estado da Inovação, Investimento e Competitividade é o rosto da reforma, que surgiu em linha com sucessivos alertas da troika para a ineficácia dos mecanismos de reestruturação e para o excessivo endividamento das empresas.

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