Quando as tragédias nos são indiferentes

Com a tragédia do voo da Malaysia Airlines, o conflito ucraniano mudou de natureza. Deixar andar tornou-se impossível.

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1. O Iraque está já em estilhaços, com consequências profundas para a região. A guerra na Síria soma-se em vítimas e em refugiados, numa escala assustadora. As negociações com o Irão levaram as partes a aceitar um prolongamento de quatro meses para conseguir um acordo.

O eterno conflito israelo-palestiniano, na sua versão actual, começa a ser cansativo, sobretudo porque teima em obedecer a uma lógica que perdeu qualquer razão de ser. Enquanto não acabar o macabro princípio do “dente por dente, olho por olho”, ninguém vai chegar a parte nenhuma. Ontem, como todos os dias, mais um atentado terrorista no Iraque matou algumas dezenas de pessoas. E ontem, como todos os dias, o regime sírio matou mais umas centenas. O balanço quotidiano das vítimas já deixou de ser notícia.

Finalmente, com a tragédia do voo da Malaysia Airlines, o conflito ucraniano mudou de natureza. Deixar andar tornou-se impossível. O problema é que a via que Putin escolheu de confronto com o Ocidente tornou mais visível a ausência de estratégia europeia face a Moscovo, mesmo que, até agora, tenha acompanhado os Estados Unidos, mesmo que sempre um pouco mais atrás. Putin ainda não conseguiu, como esperava, dividir a aliança transatlântica. Deixou-se isolar na cena internacional, como se viu na sua recente digressão pela América Latina. Tem na mão a chave do conflito: ou uma fuga para a frente ou a abertura para negociações realmente sérias. E tudo isto se passa em território europeu.

2. A Europa está rodeada de conflitos por todos os lados. A relativa ausência americana deixa ainda mais a nu a sua dificuldade em ter uma acção externa coerente. Mesmo assim, deu-se ao luxo de fracassar na sua primeira tentativa de preencher os lugares de topo das instituições europeias na quinta-feira passada, incluindo o de chefe da Diplomacia europeia. Não é um bom sinal. Na quinta-feira, num debate organizado pelo Movimento Europeu, António Vitorino começou a sua intervenção com uma “má notícia”: o “impasse no Conselho Europeu”. E outra boa: a escolha de Juncker para presidir à Comissão. Apontou a questão fundamental: a crise mudou os equilíbrios entre as instituições e entre os Estados, criando uma “nova normalidade” europeia, que é preciso agora corrigir, recuperando o papel da Comissão. Mas também disse que a Europa se tem de reformar urgentemente e que, para sermos totalmente honestos, algumas das exigências do Reino Unido (ou da Holanda), independentemente das suas intenções políticas, fazem sentido. Por exemplo, que a Europa deve ter um conjunto de grandes prioridades para o futuro, e não uma “árvore de Natal” onde cada um é livre de colocar o seu enfeite. E que o crescimento tem de ser, necessariamente, uma delas. Pascal Lamy, o francês que dirigiu a OMC é o presidente honorário da “Notre Europe – Institut Jaques Delors”, da qual Vitorino é o presidente executivo, veio a Lisboa dizer basicamente a mesma coisa. Há ideias mas é preciso considerá-las e debatê-las. Vitorino reconhece que recuperar a influência da Comissão na definição da agenda política é o grande desafio de Juncker. O recém-eleito presidente não está a ter das capitais a cooperação necessária para conseguir levar a cabo essa tarefa, afastando o risco de fazer da Comissão uma das vítimas colaterais desta crise. O antigo comissário português anda a avisar há já muito tempo que a Comissão, se escolhida apenas segundo o critério político do PE (e não através de uma negociação com o Conselho Europeu) poderia vir a revelar-se um problema: seria uma Comissão prisioneira de um “sistema de Assembleia”, sem a margem de manobra de que precisa.

3. Na semana passada, algumas peripécias deram-lhe razão. Ter instituições europeias com um equilíbrio entre homens e mulheres é, em si mesmo, uma coisa boa. Mas não a forma como Martin Schulz, o presidente do PE, a colocou, ameaçando chumbar (ou seja, não investir) a nova Comissão se não houver pelo menos nove mulheres. O mesmo Schulz também disse que o comissário escolhido pelo Reino Unido (Lord Hill) corria o risco de ser “chumbado” pelos deputados por excesso de eurocepticismo. Alguém lhe deve ter dito que era uma declaração politicamente pouco ajuizada. No dia seguinte, corrigiu o tiro, dizendo que alguns amigos lhe tinham explicado que Lord Hill até era, afinal, uma pessoa sensata, no quadro político britânico. Não é a primeira vez que o PE age em mood “politicamente correcto”. Na primeira Comissão Barroso, os deputados vetaram o nome do Comissário Italiano, figura conservadora e respeitável (duas coisas que se podem conjugar) porque considerava a homossexualidade um crime.

Enfim, para coroar tudo isto, a cimeira europeia de quinta-feira não resolveu nada sobre as nomeações, não porque seja uma tarefa fácil, mas porque ninguém quis ceder a ninguém. Vamos ver o que acontece até dia 30 de Agosto e também como é que Juncker vai finalizar a sua Comissão neste quadro de conflito. Mas as previsões não são as melhores, justamente num momento em que a Europa se prepara para fechar um ciclo de crise e abrir outro que consiga inspirar alguma esperança.

4. Muita gente achou estranho que Maria João Rodrigues apresentasse publicamente a sua candidatura a comissária portuguesa. É um comportamento que está nos antípodas dos nossos hábitos políticos. Preferimos ficar caladinhos, à espera que as negociações de bastidores nos favoreçam e jogando mais na filiação política do que nas competências. Não estamos habituados a lutar por lugares a partir do CV e das propostas que apresentamos. Mas isto é comum em muitas democracias ocidentais, sobretudo no mundo anglo-saxónico e, como é óbvio, permite escolhas muito mais transparentes. Maria João Rodrigues será, sem grande dúvida, uma das pessoas que mais acompanha e mais trabalha as questões europeias. Foi eleita eurodeputada pelo PS, já foi ministra de Guterres e é a “mãe” da estratégia de Lisboa que, mal ou bem, representou uma viragem na forma como a Europa estava, naquela altura, a olhar para o mundo. Portugal não está numa situação de grande “prestígio” em Bruxelas por ser, como eles dizem (de forma aliás muito irritante) “um país sob programa”. Barroso fez dois mandatos como presidente da Comissão. Precisa de reforçar a sua presença em Bruxelas, porque a maioria dos seus problemas é lá que se resolvem. Convinha-lhe um nome forte para tentar não ficar com uma pasta irrelevante. Há certamente outros bons candidatos (Juncker, como sabemos, pediu a Passos Coelho uma mulher e o primeiro-ministro já testou com ele vários nomes). O silêncio que pesa sobre a escolha não é de bom augúrio. Era preferível um debate aberto com as vantagens e desvantagens de cada nome. Mas isso seria pedir muito.

Vitorino é a prova viva de que a competência conta. Quando chegou a Bruxelas coube-lhe uma pasta que os seus pares ainda olhavam como irrelevante: Justiça e Assuntos Internos. O 11 de Setembro fê-la muito mais importante. Durante o seu mandato foi sempre considerado um dos melhores comissários. Ainda hoje a sua presença é requisitada como imensa frequência. Cá está um bom exemplo para uma escolha avisada do primeiro-ministro.

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