Vladimir Putin recebido com frieza e desdém na cimeira do G20

Primeiro-ministro do Canadá fez questão de dizer ao Presidente russo que só lhe apertou a mão porque isso faz parte do protocolo. Depois de um desmentido do Kremlin no sábado, Putin acabou mesmo por sair mais cedo da cimeira.

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Vários líders ocidentais exigiram a Putin o fim da interferência na Ucrânia Alain Jocard/Reuters

Poucos esperariam uma recepção calorosa a Vladimir Putin na cimeira do G20, mesmo debaixo do calor abrasador de Brisbane, na Austrália, mas as palavras do primeiro-ministro do Canadá esfriaram ainda mais qualquer hipótese de abertura diplomática: "Parece que vou ter de lhe apertar a mão, mas só tenho uma coisa a dizer-lhe: você tem de sair da Ucrânia", disse Stephen Harper.

O desconforto com a presença do Presidente da Rússia foi tão notório que a agência Reuters avançou que Vladimir Putin decidira abandonar os trabalhos do G20 mais cedo do que o previsto, saltando por cima do pequeno-almoço oficial de domingo.

A informação foi avançada pela Reuters com base numa fonte não identificada da comitiva de Putin, mas foi desmentida pelo porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov: "Isso é mentira. O Presidente [Vladimir Putin] vai participar em todos os eventos do G20."

Apesar do desmentido de sábado, Putin acabou mesmo por regressar à Rússia antes do final da cimeira, já neste domingo. "O voo para Vladivostok vai demorar nove horas e depois são mais oito horas para chegar a Moscovo. Temos de dormir quatro a cinco horas antes de regressarmos ao trabalho, na segunda-feira", justificou o Presidente russo.

Nem as fotografias tiradas ao lado do primeiro-ministro australiano, Tony Abbott, cada um com um sorriso nos lábios e um koala ao colo, chegaram para atenuar a frieza da recepção. Na quinta-feira, confrontado com pedidos para impedir a presença de Putin na cimeira, o anfitrião australiano disse que não podia tomar decisões unilaterais, mas prometeu que iria ser muito duro com o Presidente russo, recorrendo a uma expressão típica do futebol australiano – shirtfront, uma investida violenta com o ombro contra o peito do adversário com o único objectivo de o derrubar.

"Vou derrubar o sr. Putin, podem ter a certeza disso. Vou dizer ao sr. Putin que cidadãos australianos foram assassinados por rebeldes apoiados pela Rússia, com equipamento militar fornecido pela Rússia", disse Tony Abbott, referindo-se ao abate do avião da Malaysia Airlines no espaço aéreo ucraniano no dia 17 de Julho. A seguir à Holanda e à Malásia, a Austrália foi o país que mais cidadãos perdeu no voo – 27 das 298 vítimas mortais.

O primeiro dia da reunião do G20 acabou por ser dominado pela crise na Ucrânia, apesar de o tema não fazer parte da ordem oficial de trabalhos.

No encontro em Brisbane, o primeiro-ministro australiano queria manter a agenda colada às medidas de crescimento económico e de liberalização do comércio mundial, mas a tentativa de escapar ao dilúvio de temas como a Ucrânia, a epidemia do ébola e as alterações climáticas revelou ser uma tarefa condenada ao fracasso.

A informação de que Vladimir Putin iria abandonar mais cedo a cimeira do G20 começou a circular após uma reunião tensa com o primeiro-ministro britânico, David Cameron.

De acordo com o relato do enviado do jornal The Telegraph, Cameron disse a Putin que ele se encontra numa "encruzilhada" e que arrisca ter de enfrentar em breve um novo pacote de sanções internacionais. Durante o encontro, que durou cerca de 50 minutos e que o jornal britânico descreveu como "robusto", o Presidente russo reafirmou que o seu país não tem qualquer envolvimento directo na guerra no Leste da Ucrânia, onde já morreram mais de 4000 pessoas desde Abril.

Para além do encontro com David Cameron, Vladimir Putin conversou também com o Presidente francês, François Hollande, e teve de ouvir as esperadas reprimendas do Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e da chanceler alemã, Angela Merkel.

Obama afirmou que os Estados Unidos estão na linha da frente da oposição à "agressão da Rússia contra a Ucrânia, que representa uma ameaça para o mundo", e Merkel indicou que a lista negra da União Europeia (UE) com nomes de responsáveis russos poderá ser alargada no início da semana.

Sobre a possibilidade de a UE endurecer as sanções já aplicadas aos sectores financeiro, energético e de armamento da Rússia (algo que parece pouco provável no futuro imediato), Vladimir Putin deixou um aviso, numa entrevista ao canal público alemão ARD: "Se cortarem os recursos das nossas instituições financeiras, elas terão de emprestar menos dinheiro a empresas russas que trabalham com parceiros alemães. Mais cedo ou mais tarde, [as sanções] começarão a afectar tanto o vosso país como o nosso."

Na mesma entrevista, Putin afirmou que pretende normalizar as relações com os seus "parceiros, incluindo os Estados Unidos e a Europa", mas voltou a argumentar que o cerco à economia russa pode ter efeitos positivos para o país a longo prazo: "Aquela vida confortável, em que tudo o que precisávamos de fazer era produzir mais petróleo e gás e comprar tudo o resto, é uma coisa do passado. Agora temos de pensar em produzir os nossos próprios bens, não apenas petróleo e gás."

Para além da situação na Ucrânia, os líderes do G20 foram forçados pelos acontecimentos a apresentarem propostas para combater a epidemia de ébola em países da África Ocidental e a introduzirem os temas das alterações climáticas na agenda oficial, apesar da forte oposição do primeiro-ministro da Austrália, país que apresenta a mais elevada taxa de poluição per capita.

Aproveitando a embalagem do histórico acordo assinado a meio da semana com a China, o Presidente norte-americano, Barack Obama, não se coibiu de declarar o tema como prioritário nesta cimeira, forçando a sua inclusão no comunicado final, que será divulgado no domingo: "Se os EUA e a China conseguem chegar a acordo, o resto do mundo também consegue", declarou Obama.

Ainda no primeiro dia da reunião, os membros do G20 emitiram um comunicado sobre o combate ao ébola, pedindo "aos países que ainda não o fizeram que participem com contribuições financeiras, equipas médicas qualificadas e treinadas, equipamento e medicamentos", e ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional que "mantenham o seu forte apoio aos países afectados (…), através de uma combinação de empréstimos a taxas reduzidas, empréstimos a fundo perdido e alívio de dívidas".

Os primeiros casos do mais grave surto de ébola de que há registo surgiram em Dezembro de 2013 na Guiné Conacri. Desde então já morreram mais de 5500 pessoas, a quase totalidade na Libéria, na Serra Leoa e na Guiné Conacri.

(Notícia actualizada às 12h57 de domingo com desenvolvimentos sobre a saída antecipada do Presidente russo da cimeira do G20.)

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