O peso do mundo

Há dez anos Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres tornou-se uma voz que incomoda, em particular na Europa

Ouve-se António Guterres falar e sente-se o peso do mundo. Não nos seus ombros, porque não está só: segue uma filosofia internacional com 60 anos de prática e está rodeado por oito mil colegas que todos os dias arriscam a vida por princípios simples como o direito a comer. Mais de 80 morreram este ano.

O peso que se sente está nas suas palavras. Há dez anos Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Guterres tornou-se uma voz que incomoda, em particular na Europa. Pede que as fronteiras estejam abertas para receber quem foge da violência e da guerra. Diz que quem acredita que a solução simples para travar a imigração ilegal é fechar as portas se esquece que, quando se fecha uma porta, se abre uma janela e que se a janela for fechada, se abre um túnel. E lembra que a Europa foi durante décadas um continente de emigrantes, que fugiam das guerras e das ditaduras.

Guterres pede que as regras de financiamento internacional sejam alteradas para que a distribuição dos custos dos conflitos seja mais justa. Diz que é preciso um reforço da cooperação entre os países de onde as pessoas saem e os países onde elas recebem asilo, e entre os que são de trânsito e de destino final. Que são precisos melhores mecanismos regionais. Mais inovação. Mais cooperação dentro da própria ONU, entre governos, sociedade civil e sector privado, e entre os departamentos dos governos. Pede mais mecanismos de alerta, de prevenção de conflitos e de resolução de conflitos. Mais ligação entre a cooperação para o desenvolvimento económico e a mobilidade humana. Mais apoio da comunidade internacional aos países vizinhos de conflitos que recebem refugiados. E diz que são precisas soluções sustentáveis para apoiar os refugiados (hoje o rácio é de um para cada quatro novos casos de deslocados).

E ainda falta falar dos dez milhões de pessoas que não têm país, da protecção no mar, das mulheres e das crianças e do facto de metade de todos os 51 milhões de refugiados que há hoje no mundo terem menos de 18 anos.

Ouve-se Guterres falar e antecipa-se a angústia. E a frustração. Sobretudo nos discursos dos últimos anos, já distantes das suas abordagens iniciais, mais frias e atomizadas.

Passaram dez anos e nada melhorou. Pelo contrário. Todos os meses há um novo conflito no mundo sem que nenhum dos velhos tenha sido resolvido. A Síria, Iraque, República Centro Africana, Sudão, Nigéria, Mali, Líbia e Ucrânia juntaram-se às "crises esquecidas" do Afeganistão, Congo ou Somália.

Guterres apela a que a ajuda humanitária não prossiga num registo "business as usual". Apela a um "compromisso total e de todos nós", pede que a política seja feita com a cabeça e com o coração. E repete que o mundo tem de ser capaz de evitar os conflitos, que tem de ter visão e vontade política para uma prevenção real e que tem de dar mais apoio nos esforços de mediação. Quando Guterres fala, todos aplaudem. Mesmo quando não gostam do que ouvem. Também nesta parte do "peso do mundo" dar dinheiro não chega. É preciso a política.

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