Mais de 300 pessoas podem ter morrido na travessia do Mediterrâneo

Nove sobreviventes contaram que dois barcos pneumáticos se viraram quando tentavam chegar à ilha de Lampedusa. Há informações de um terceiro barco desaparecido.

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A porta-voz em Itália do ACNUR fala em “tragédia enorme e horrível” Reuters

Mais de 200 pessoas desapareceram no Mediterrâneo quando as embarcações em que viajavam não resistiram a uma tempestade entre a costa da Líbia e a ilha italiana de Lampedusa, segundo os relatos feitos por sobreviventes. Um balanço trágico que poderá ultrapassar as 300 vítimas, caso se confirmem as informações de que há um outro barco desaparecido no mar.

“São nove, estão sãos e salvos, após quatro dias no mar. Os outros 203 foram engolidos pelas ondas”, escreveu na rede social Twitter Carlotta Sami, porta-voz em Itália do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), depois de falar com os sobreviventes que chegaram na manhã desta quarta-feira a Lampedusa. “É uma tragédia enorme e horrível”, afirmou.

Segundo o que foi possível reconstituir do seu relato, os imigrantes partiram no sábado de uma praia a 15 quilómetros de Trípoli, na Líbia. Faziam parte de um grupo de 420 imigrantes subsarianos – a maioria homens, mas também adolescentes – que embarcaram em quatro insufláveis, cada um transportando uma centena de pessoas, adianta a Organização Internacional das Migrações (OIM).

As duas embarcações naufragadas terão passado dois dias no mar até que foram vencidas pelo mau tempo: uma virou-se e a outra terá desinsuflado, acabando por afundar-se. Há informações de que os nove sobreviventes, que falam francês e serão oriundos de África Ocidental, foram resgatados por um navio comercial, que informou depois as autoridades italianas.

As duas organizações internacionais adiantam que a terceira embarcação é aquela que foi resgatada no domingo pela Guarda Costeira italiana numa zona próxima, com 105 pessoas a bordo. A operação realizou-se em condições atmosféricas muito difíceis – as autoridades dão conta de ventos de 120 km/h e ondas de até oito metros – e no momento em que o barco foi localizado sete imigrantes tinham já morrido de hipotermia. Mas a Guarda Costeira tinha na zona apenas duas lanchas e o reboque do pneumático até Lampedusa prolongou-se por 18 horas, durante as quais mais 22 pessoas não resistiram ao frio.

O mistério permanece em relação ao quarto barco que terá partido da Líbia. “Esperamos que não tenham chegado a partir ou que tenham feito meia volta”, disse à AFP uma outra porta-voz do ACNUR em Roma. A OIM é mais pessimista sobre a sorte dos imigrantes que, à falta de notícias, foram listados como desaparecidos. “Eram 420 pessoas à partida, pelo que podemos calcular que o número de vítimas ronde as 330”, disse à mesma agência Flavio di Giacomo, representante da organização em Itália.

O responsável denunciou a crueldade dos traficantes que, apesar da tempestade no mar, terão obrigado os imigrantes a entrar no barco “sob a ameaça de pistolas e bastões, depois de lhes terem retirado os documentos e o dinheiro”. Uma atitude que prova, uma vez mais, que quem se dedica a este lucrativo negócio trata os seres humanos “como mercadoria, sobretudo os que são oriundos da África negra”.

No seu conjunto, o naufrágio será um dos piores registados nos últimos meses e reacende o debate sobre as consequências, há muito antecipadas pelas agências internacionais e organizações de defesa dos direitos humanos, do fim da operação Mare Nostrum, no final do ano passado. Lançada pela Marinha italiana em Outubro de 2013, depois de quase 400 pessoas terem morrido em dois naufrágios ao largo de Lampedusa, a operação permitiu o resgate de mais de 150 mil pessoas de barcos em dificuldades, mas Roma anunciou que não poderia continuar a comportar sozinha os elevados custos. Em Novembro, deu lugar a uma missão da Frontex, a agência de fronteiras da União Europeia, mas que tem meios mais escassos e um mandato circunscrito a 30 milhas das costas europeias.    

“Esta é uma tragédia de enorme dimensão que nos recorda de maneira cruel que mais vidas se podem perder, se aqueles que procuram a segurança forem deixados à mercê do mar”, lamentou Vincent Cochetel, director do ACNUR para a Europa, voltando a insistir que a “Europa não pode continuar a fazer pouco e a agir tarde”. Ainda antes destes naufrágios, o ministro do Interior italiano tinha manifestado a sua “profunda dor” pela morte dos 29 imigrantes que não resistiram ao frio e voltou a exigir à UE uma resposta “mais vigorosa” para responder à crise humanitárias. Mas, confrontado com as críticas aos meios limitados que Itália agora tem no Mediterrâneo para responder a pedidos de socorro, Angelino Alfano afirmou que mesmo durante a Mare Nostrum centenas de pessoas perderam a vida no mar.

Mais de 3200 pessoas morreram em naufrágios no Mediterrâneo durante 2014, ano em que chegaram às costas italianas 170 mil pessoas, num recorde alimentado pelo êxodo de refugiados das guerras na Síria e no Iraque, e pelo caos que se apoderou da Líbia, porto de partida de muitos imigrantes da África subsariana. E se em anos anteriores o fluxo diminuía durante os meses de Inverno, agora há cada vez mais pessoas a fazerem a travessia em condições adversas. Só em Janeiro, chegaram a Itália 3528 pessoas, o que representa um aumento de 40% face ao mesmo mês de 2014, revelou Alfano. E ainda antes deste naufrágio, a OIM contava já 44 pessoas mortas e outras 42 desaparecidas durante a tentativa de chegar à Europa.

O Papa Francisco, que no Verão de 2013 foi à pequena ilha para denunciar a indiferença do mundo ante os milhares de imigrantes que morrem na arriscada travessia, disse na audiência semanal desta quarta-feira estar a seguir “com muita preocupação as notícias que chegam de Lampedusa”. Prometeu rezar pelas vítimas e “encorajar de novo a solidariedade para que aqueles que estão em dificuldades sejam resgatados”.

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