"Navios fantasma" são a nova arma dos traficantes para lucrar com imigração no Mediterrâneo

Em três dias, Itália resgatou de cargueiros à deriva no Mediterrâneo mais de 1200 pessoas, a maioria sírios. Fim da operação Mare Nostrum pode explicar nova táctica dos contrabandistas

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O navio Blue SKy M, ao chegar ao porto italiano de Gallipoli, com cerca de 700 imigrantes a bordo NUNZIO GIOVE/AFP

Já lhes chamam navios fantasmas, barcos cheios de gente desesperada para fugir à guerra, arrebanhada por traficantes que não têm escrúpulos em colocá-la em carcaças mais aptas para a sucata do que para atravessar o Mediterrâneo em pleno Inverno e deixá-la depois entregue à sua sorte. Em apenas três dias, as forças navais italianas assumiram o controlo de dois cargueiros abandonados pela sua tripulação, resgatando mais de 1200 pessoas, na sua maioria refugiados sírios.

O drama dos que arriscam a vida para chegar às costas do Sul da Europa não é novo – quase 3500 morreram na travessia do Mediterrâneo, “a rota mais mortífera do mundo”, nos primeiros 11 meses de 2014, ano em que as chegadas triplicaram o recorde registado em 2011. Só à costa italiana chegaram 160 mil imigrantes, a uma média de quase 500 por dia. O que é inédito é o modus operandi que os episódios desta semana revelam.

Ao invés dos pneumáticos ou das pequenas embarcações de pesca usadas até aqui pelos traficantes, os imigrantes e candidatos a asilo são colocados em cargueiros prestes a serem abatidos, mas capazes de levar mais gente e de navegar até às costas europeias em pleno Inverno. Ainda em águas internacionais, os navios são colocados em piloto automático, dirigidos ao destino, e a tripulação abandona os comandos. “É o terceiro caso que registamos nestas últimas semanas de navios abandonados à sua sorte com centenas de pessoas a bordo”, revelou o almirante Giovanni Pettorino, comandante de operações da Guarda Costeira italiana.

O contrabando é um negócio obscuro, pelo que é impossível saber o motivo desta alteração de método, ou se esta é uma tendência que veio para ficar. Mas o uso de navios de maior porte acontece depois de Itália ter posto fim, a 1 de Novembro, à missão Mare Nostrum, uma operação de grande escala lançada um ano antes para evitar a repetição de naufrágios como os que provocaram mais de 400 mortos ao largo da ilha de Lampedusa e que permitiu salvar mais de 150 mil vidas. Em seu lugar, a Frontex, a agência de fronteiras da União Europeia, lançou a operação Tritão, com orçamento, meios e um mandato mais modesto. Ao invés do salvamento, dá prioridade ao controlo de fronteiras e os seis navios fornecidos por Estados-membros devem cingir a sua actuação até 30 milhas da costa.

Carlotta Sami, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), explicou à Reuters que o fim da Mare Nostrum, bem como o agravamento da instabilidade na Líbia, tornou mais arriscado o uso de barcos de menor porte para fazer a travessia. Mas outros têm explicações menos benevolentes. A Tritão é uma operação “que não assusta ninguém”, disse à BBC o eurodeputado britânico Claude Moraes, presidente da Comissão de Liberdades, Justiça e Assuntos Internos, acrescentando que “sem o peso de um sistema judicial” capaz de os acusar e condenar, “os traficantes têm menos medo de actuar ao longo das rotas de contrabando”.

Ganância

A isto junta-se a ganância. “Temos informações de que os imigrantes pagam entre mil a dois mil dólares por pessoa”, disse à AFP Joel Millman, porta-voz da Organização Internacional para as Migrações, explicando que facilmente os traficantes conseguem um milhão de dólares só com uma viagem, “o que lhes dá para pagar a tripulação, a sua fuga e os subornos que lhes serão úteis em próximas operações”. O almirante Pettorino diz que há imigrantes que chegam a pagar 6000 euros pela travessia e os cargueiros em que viajavam “estão em fim de vida e podem ser comprados por 100 ou 150 mil euros”. Os contrabandists “não têm por isso nenhum remorso em abandonar o navio, tendo em conta a margem de lucro” , afirmou, citado pelo Corriere della Sera.

Terá sido isso que aconteceu com o Carolyn Assense, interceptado pela guarda costeira italiana a 20 de Dezembro, a 100 milhas (185km) da Sicília, com 800 imigrantes a bordo. Abandonados pela tripulação, os ocupantes usaram um telefone por satélite para alertar as autoridades que entraram a bordo e conduziram o navio até terra.

Mais dramático foi o resgate, na noite de 30 para 31 de Dezembro do Blue Sky M, cargueiro com 38 anos e bandeira moldava, travado quando avançava sobre a rochosa costa da Apúlia, no salto da “bota italiana”. “Evitámos uma tragédia”, disse a guarda costeira, revelando que quando os seus homens, transportados de helicóptero para o cargueiro, conseguiram desactivar o piloto automático, a embarcação estava “a cinco milhas e 45 minutos” do embate.

A bordo do navio, que terá partido da Turquia, seguiam 800 pessoas, a maioria de nacionalidade síria, acolhidas em escolas de Gallipoli, estância balnear onde o navio atracou na madrugada de quinta-feira. Inicialmente foi dito que a tripulação tinha abandonado o navio, pouco depois de a Marinha grega o ter abordado, perante um alerta que dava conta da presença de “homens armados a bordo”. Mas a polícia italiana deteve entretanto quatro alegados tripulantes, incluindo o comandante, que se teriam tentado misturar entre os passageiros.

A história varia pouco no caso do Ezadeen, um navio com quase 50 anos, construído para transportar gado e deixado à deriva a 40 milhas do cabo de Leuca. “Estamos sozinhos e não temos ninguém para nos ajudar”, respondeu uma passageira quando, quinta-feira à noite, a capitania pediu informações sobre a embarcação, que tinha sido posta em piloto automático e ficou sem combustível. Com o mar revolto e o vento forte, a guarda-costeira voltou a usar helicópteros para levar os seus homens a bordo, onde encontrou 450 pessoas.

O navio só na noite desta sexta-feira deverá aportar em Itália, mas as autoridades afirmam que a maioria dos passageiros são também sírios – a guarda-costeira diz que o cargueiro partiu da Turquia, embora sites especializados em navegação assegurem que saiu de Tartus, na Síria, e passou por Chipre.

A chegada destes cargueiros mostra “que sem vias seguras para chegar à Europa não seremos capazes de reduzir os perigos associados a estas travessias”, reagiu Vincent Cochetel, director no continente do ACNUR, repetindo o apelo a uma “acção concertada” da UE que o alto-comissário, António Guterres, tinha já feito quando, em Dezembro afirmou que políticas de imigração europeias “devem ser elaboradas de forma a que as vidas humanas não se transformem num dano colateral”.  

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