Enquanto a Europa não nasce e se olhássemos para a receita?

A União Europeia continua num meio caminho que será insustentável a prazo, pois ou progride para maior integração política ou desintegra-se.

No início da crise, com parte significativa da dívida dos países periféricos no balanço dos bancos dos países credores, o problema era sistémico, hoje, não é pois parte da dívida está em mãos nacionais. A Itália vive ainda em estado de graça, que não durará muito, do novo governo do jovem Matteo Renz. A França iniciou já o começo do fim de Hollande. Hollande, depois de uma grande derrota nas autárquicas, com a subida da Frente Nacional, de dar o dito por não dito ao reduzir o  governo para quase metade da dimensão inicial, da saída dos verdes do governo e de ter uma frágil maioria parlamentar, só faltava mesmo a iniciativa de cerca de cem deputados do partido socialista francês (PSF), que querem um “contrato de maioria”. Estes deputados pretendem que o governo passe a actuar em sintonia com o parlamento, deixando claro que darão agora o voto de confiança ao governo de Manuel Valls, mas a ameaça de que “se o governo rejeitar sistematicamente as nossas emendas [ao orçamento] como aconteceu frequentemente nos últimos dois anos, faltarão várias vozes no dia do voto” (Le Monde). A data para a prova de fogo de Hollande  já está marcada: a votação do próximo Orçamento de Estado. Aquilo que os deputados do PSF ainda não perceberam é que a margem de manobra de Hollande no quadro do “Tratado Orçamental”, e da não renegociação da dívida francesa,  é mínima e que a sua crítica deve ser dirigida mais para a inépcia das instituições europeias e não apenas para o Eliseu. Lá chegarão também ao tema da renegociação da dívida...

2. É importante perceber que no quadro europeu não estamos sós nem no fardo da dívida e do défice orçamental em 2013, nem no fraco crescimento previsto para 2014. Grécia, Itália, Irlanda e Chipre têm dívidas acima dos 100% do PIB e Bélgica, Espanha e França acima dos 90%; Grécia, Espanha, Irlanda e Chipre terão tido défices públicos em 2013 superiores ao nosso, respectivamente de  13,1%; 7,2%; 7,1% e 5,5% do PIB.  Dos países com dívida superior a 90% só a Irlanda e a Bélgica terão crescimento superior ao nosso para 2014 (considerando que Portugal consegue crescer 1,2%). Isto significa que não será só Portugal que não irá cumprir uma das duas vertentes do Tratado Orçamental, a saber, o ritmo de redução do peso excessivo da dívida. Porém, considero que se deve continuar na redução do défice (estrutural). O problema do tratado orçamental não está em ter uma vertente irrealista (dívida), está em não ser complementado por um orçamento “federal” da União Europeia, ou da zona euro, de dimensão suficiente que assuma a função de estabilização macroeconómica e não ser acompanhado de uma reestruturação da dívida. A União Europeia continua assim num meio caminho que será insustentável a prazo, pois ou progride para maior integração política ou desintegra-se. 

3. Entretanto teremos de nos ir governando e tomando opções. Do lado da despesa discute-se se os cortes em salários e pensões serão temporários ou definitivos e sobretudo que perspectiva para a sua evolução. Parece-me uma evidência que a reposição, sem mais, de salários e pensões significaria agravar o défice em percentagem do PIB, mesmo assumindo um efeito multiplicador positivo dessa despesa acrescida, ou seja abdicar totalmente do tratado orçamental, o que significaria um segundo resgate e a prazo, uma saída do euro. Até que se atinja a situação de quase equilíbrio orçamental, a opção política que defendo é que a massa salarial e as pensões evoluam positivamente, a partir daqui, mas a valores nominalmente inferiores ao crescimento nominal da  economia. Nem temporários, nem definitivos portanto.

4. Há, porém, uma dimensão que tem estado alheada do debate público e da própria troika, que é a do papel da receita pública na consolidação orçamental e nos vários organismos das administrações públicas. É por demais evidente que a arquitectura financeira da nossa administração pública – com a atribuição da totalidade das receitas tributárias das regiões autónomas às regiões – é economicamente absurda. Se aplicássemos o mesmo princípio a Espanha e às comunidades autónomas espanholas, isto é, se o nível intermédio de governo ficasse com a totalidade das receitas nelas cobradas, não haveria recursos  para financiar as funções de soberania espanholas (defesa, negócios estrangeiros, etc.) nem para os municípios. Corrigir este erro crasso, só se pode fazer de duas maneiras: ou alterando a Constituição, o que me parece difícil,  ou reduzindo significativamente as muitas transferências que vão do continente para as regiões.

5. Há uma série de receitas públicas consignadas que só contribuem para o desperdício da receita e despesa pública. Urge mudar o modelo de financiamento do turismo em Portugal. Desde 2010 (Publico 24/10/10) que refiro o anacronismo do Instituto de Turismo de Portugal (ITP) ser um instituto  financiado por impostos (imposto sobre o jogo e IVA). O Tribunal de Contas, no seu parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2012, vem também alertar para que tal não deveria acontecer. Não estamos a falar de trocos, mas de 96,2 milhões orçamentados em 2013 a que acresce 20,8 milhões de IVA. Isto deveria ser receita do Estado, que transferiria aquilo que julgasse conveniente para o ITP. Para além de se acabar com a consignação do imposto de jogo para o ITP, o IVA da restauração deveria passar para a taxa intermédia. Toda a evidência disponível sugere que existiram efeitos significativos, em insolvências e perca de empregos , resultantes da subida da taxa para 23%. Finalmente, a introdução de uma taxa sobre as dormidas de valor variável de 0,5 a 2 euros para quartos em função do valor do quarto ou da qualidade do serviço hoteleiro (estrelas por exemplo) existe em vários países (Belgica, França, vários estados e cidades dos EUA) e permitiria que os não residentes também contribuissem.

6. Há outras consignações de impostos que não deveriam ser feitas, conforme aliás refere o Tribunal de Contas. O Fundo de Estabilização Tributária, o Instituto Nacional de Emergência Médica, a Santa Casa da Misericórdia deveriam receber transferências do sub-sector Estado, com regras claras, mas não receber diretamente receitas fiscais. Se tal acontecesse, haveria maior escrutínio sobre a despesa e existiriam poupanças inevitáveis. Há ainda vários fundos (estabilização aduaneiro, acidentes de trabalho) em que as receitas em 2012 excederam largamente as despesas. Não haverá aqui lugar para poupanças?

7. Numa altura em que vários indicadores sugerem aumento da pobreza e em que se cortam prestações para os mais desprotegidos, como os desempregados, os que auferem  rendimento social de inserção ou o complemento solidário para idosos, não me parece aceitável que não se olhe para os desperdícios do lado da receita. O orçamento de Estado incorpora em si dezenas de organismos que, contra os princípios orçamentais, contêm receitas consignadas que obviamente terão que ser afectas a essas despesas, desse instituto ou fundo, mesmo que não sejam justificáveis. A obsessão exclusiva com os cortes na despesa, a captura por interesses instalados e a inércia têm deixado intocável a análise da receita, algo que é necessário reapreciar.

Professor do ISEG/UTL

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