A Europa depois de Charlie

Há uma pergunta difícil e decisiva: “Qual é o objectivo dos inimigos?”

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Houve os atentados jihadistas de Madrid (2004) e Londres (2005). Ao contrário destes, o de Paris não foi um massacre cego: escolheu um alvo de extraordinária ressonância. Matou, selectivamente, em nome da punição da "blasfémia". Disparou sobre um pilar da civilização europeia — a liberdade de expressão. "Um Continente que até há pouco tempo pensou a sua modernidade como eternamente segura vê agora as suas liberdades sob cerco", escreveu no Financial Times o analista Philip Stephens. No entanto, o alvo pode não coincidir com o objectivo. A Europa foi ferida mas resistirá ao ataque às suas liberdades. A reacção ao atentado é uma eloquente prova.

O "terror puro" é, de certa forma, uma finalidade em si mesma — "socializar o medo" como teorizava a ETA. A "socialização do medo" tem, no caso do jihadismo, um desígnio estratégico: provocar a partir do medo uma reacção de ódio para romper as críticas pontes entre a Europa e as suas comunidades muçulmanas. Trata-se de um "processo de hostilidade recíproca que se retroalimenta com cada acto de violência" (Manuel Castells).

Saber qual a organização que está por trás do crime — aparentemente a Al-Qaeda — é importante do ponto de vista da resposta policial. Mas todas elas trabalham para promover um estado de guerra entre islão e Ocidente. É o nó do problema.

O atentado, escreveu no Monde o islamólogo Olivier Roy, transformou o debate intelectual sobre a liberdade de expressão e o islão numa questão quase existencial: "Interrogarmo-nos sobre o laço entre o islão e a violência significa interrogarmo-nos sobre o lugar dos muçulmanos em França." Ou, mais precisamente, sobre a relação entre a Europa e as suas comunidades muçulmanas.

O islão não é todo igual. Há um problema de fundo com o mundo muçulmano (ver Revista 2) e um problema de integração das comunidades muçulmanas na Europa, que em grande parte vivem fechadas sobre si mesmas. Mas transmitir a ideia de que os 25 milhões de muçulmanos europeus são genericamente simpatizantes do terrorismo é exactamente o que serve os jihadistas.

As respostas políticas

Vão seguir-se debates sobre a prioridade do "diálogo e da democracia" ou de "medidas securitárias" drásticas, como a abolição de Schengen ou uma campanha anti-imigração, insistentemente pedidas pela Frente Nacional, de Marine Le Pen, pela Liga Norte italiana, de Matteo Salvini, pelo holandês Geert Wilders ou pela nova "maioria silenciosa" alemã mobilizada pelo movimento Pegida. É uma imensa agenda para os dirigentes europeus fixados nas próximas eleições, a quem custa pensar em termos estratégicos perante um inimigo que programa a longo prazo.

Por outro lado, não está apenas em causa a segurança "dentro da Europa", que uma ilusória muralha poderia proteger. A Síria, o Iraque, a Líbia, o Sahel do Oeste africano são teatros de guerra e de implantação do Estado Islâmico ou da Al-Qaeda. São fronteiras da Europa e viveiro de jihadistas europeus. O público europeu reage à selvageria das decapitações mas não tem plena consciência da amplitude da ameaça.

Enquanto o Estado Islâmico ocupar o território de um "califado" terrorista não haverá segurança na Europa, declara Paolo Gentiloni, ministro italiano dos Negócios Estrangeiros. A Al-Qaeda não ocupa um território definido, parasita grupos jihadistas e fomenta uma rede mundial de terrorismo que se desenvolve espontaneamente sob a sua "marca".

"Nós, franceses, temos de enfrentar o ataque terrorista da mesma forma que os americanos após o 11 de Setembro: firme e claramente, mas também com responsabilidade", escreve o analista Dominique Moïsi. "Isto significa que devemos evitar agir como a América de 2003, quando George W. Bush alargou ao Iraque ‘a guerra global contra o terror’". E por isso a perdeu. Não foram os militares quem a perdeu, mas quem se equivocou quanto ao inimigo: de certo forma, Bin Laden atraiu os americanos para guerras que não poderiam vencer.

Dilemas europeus

A Frente Nacional, de Marine Le Pen, levanta questões certas e dá respostas erradas, disse há muitos anos Laurent Fabius. Os europeus deverão rever as suas políticas de segurança e de controlo da imigração. Não é fácil e mais crítico será depois do atentado. Todos se lembrarão dos ataques (da esquerda socialista) de que foi alvo Manuel Valls, enquanto ministro do Interior francês. Ele reconhecia o sentimento de insegurança de grande parte dos franceses — em particular nas classes baixas. Defendeu o controlo da imigração clandestina, antes que se consolidasse a associação fatal entre imigrante e delinquente. E para conter a atracção do jihadismo.

A Europa corre o risco de se encerrar num dilema: os fundamentalistas querem a sharia, os xenófobos querem homogeneidade étnica e cultural. Trata-se de evitar que a política fique paralisada entre os que se opõem às medidas de controlo e os que reivindicam medidas drásticas contra a imigração e, indirectamente, a discriminação dos muçulmanos.

"A marcha da islamofobia dentro dos bastiões sociais-democratas dos países do Norte é um sério sinal de alarme", sublinha Philip Stephens. Os milhares de jovens europeus combatendo na Síria constituem uma inegável ameaça de radicalização dos marginalizados. O fundamentalismo islâmico oferece-lhes uma identidade ausente nas suas comunidades."

Reside aqui um dos mais perigosos efeitos do atentado: polarizar as posições quando são necessários consensos. O medo é um poderoso catalisador. É na resposta ao atentado, e não só em França, que se joga o padrão da democracia europeia.

Medo? Os europeus devem tomar consciência de que são mais fortes, de que o seu mundo é mais seguro e poderoso do que o caótico mundo muçulmano.

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