Governo não pode abater défice com transferência dos CTT para ADSE

Receita de 180 milhões com passagem dos reformados dos correios para sistema de saúde do Estado deverá ser considerada parte da privatização da empresa. Mesmo que assim não fosse, novas regras do Eurostat só permitem que abata à dívida.

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Mesmo que a transferência ocorra muito tempo depois da venda é provável que os dois processos sejam vistos como um só Enric Vives-Rubio

A transferência dos actuais e futuros pensionistas dos CTT para o sistema de saúde do Estado estava prevista para o final do ano passado, mas o Governo optou por adiar a medida, justificando a decisão com as resistências dos sindicatos e os impactos negativos que estas poderiam ter na privatização dos correios. Porém, ao que o PÚBLICO apurou, este adiamento também está relacionado com as dúvidas que existem sobre se a operação poderá ajudar a reduzir o défice deste ano.

A ideia, inscrita no Orçamento do Estado para 2014, é transferir os aposentados dos CTT que descontam para a Caixa Geral de Aposentações para a ADSE. Os encargos que o sistema público de saúde teria de assumir no futuro seriam compensados pelo pagamento imediato de cerca de 180 milhões por parte da empresa. O Governo começou a trabalhar o tema no final do ano passado e a medida foi inclusivamente anunciada, em Outubro, pelo conselho de administração dos CTT.

Num comunicado interno, a que o PÚBLICO teve acesso, a gestão informava que passaria a haver “uma clara diferenciação entre a situação de vida activa do trabalhador, onde as despesas continuarão a ser suportadas pela empresa, e a fase de aposentação, em que o Estado assumirá esse encargo”, passando este, através da ADSE, “a garantir o apoio” após a reforma. A administração escrevia, aliás, que a transferência seria “de imediato assumida e regulamentada”.

No entanto, a promessa acabou por não se concretizar antes da privatização, que ocorreu a 5 de Dezembro através da dispersão de 70% do capital em bolsa. E, até agora, continua sem efeito. Do lado do Governo, a intenção mantém-se, tendo o adiamento sido justificado com a firme oposição dos sindicatos à medida. É que, estando dentro do sistema de saúde dos correios, os aposentados pagam actualmente uma contribuição mensal de 1,5% da reforma. Com a transferência para a ADSE, a fasquia subirá para 2,5%, na sequência do aumento inscrito pelo Governo no Orçamento do Estado para este ano.

Os contactos entre a administração e os sindicatos sobre a aplicação da medida mantiveram-se até um mês antes da venda dos CTT, mas o discurso foi mudando e, na última reunião entre as partes, que ocorreu no final de Janeiro, o tema foi abordado, mas de forma superficial, sem garantias quanto ao calendário. Aliás, o secretário de Estado das Infra-estruturas, Transportes e Comunicações já tinha afirmado, em meados de Novembro que não havia “nenhuma decisão formal tomada”, o que contrasta com o teor dos comunicados internos da empresa.

No entanto, ao que o PÚBLICO apurou, o adiamento não está unicamente relacionado com as resistências dos trabalhadores. Existem ainda dúvidas sobre os impactos da transferência para as contas públicas, uma vez que a operação deverá ser considerada parte integrante do processo de venda dos correios e, por isso, não poderá ser usada para abater o défice de 2014, já que as receitas obtidas em privatizações só podem abater à dívida.

Este tem sido, aliás, o procedimento seguido pelo Instituto Nacional de Estatística em casos semelhantes analisados recentemente, como o da ANA. Aquando da venda da gestora aeroportuária (hoje detida pelo grupo francês Vinci), o Governo pretendia que os 1200 milhões de euros gerados com a concessão dos aeroportos por 50 anos servissem para reduzir o défice, mas a intenção foi travada pelo INE e pelo Eurostat. As autoridades estatísticas consideraram que esta verba estava incluída na privatização da empresa, pelo que também só poderia abater à dívida.

O facto de a transferência para a ADSE ocorrer com um intervalo de tempo considerável em relação à data da venda dos correios em bolsa pode não evitar que os dois processos sejam vistos como um único, pelo facto de a primeira operação ser entendida como consequência da privatização.

Novas regras europeias também criam obstáculos
Além disso, mesmo que o INE acabasse por aceitar que os 180 milhões a pagar pelos CTT não estavam relacionados com a privatização, a medida iria sempre embater num outro obstáculo. Com a entrada em vigor do novo Sistema Europeu de Contas, que a partir de Setembro implicará novas regras no cálculo de indicadores como o PIB, o défice ou a dívida pública, torna-se mais difícil para os Governos obter receitas extraordinárias com este tipo de operações.

A passagem de fundos para a ADSE poderá ser equiparada à transferência dos fundos de pensões porque a lógica é a mesma: passar responsabilidades futuras para o Estado em troca de uma compensação financeira imediata. E as novas regras ditam que as receitas geradas com este tipo de medidas não podem servir para abater o défice, assim como acontecerá com as despesas a suportar com os pagamentos daquelas responsabilidades (sejam elas reformas ou benefícios de saúde, no caso dos CTT).

Neste momento ainda não há qualquer posição oficial relativamente a esta matéria por parte das autoridades estatísticas. O INE e o Eurostat apenas se pronunciam definitivamente sobre as operações depois de estas serem concretizadas de forma detalhada pelo Ministério das Finanças, algo que ainda não aconteceu. O PÚBLICO contactou o Ministério da Economia, mas não obteve respostas.

Os 180 milhões de euros inscritos no Orçamento do Estado para este ano fazem parte de um bolo global de 419 milhões de euros de receitas extraordinárias que o Governo quer arrecadar este ano. Além da transferência dos reformados dos correios para a ADSE, está ainda prevista a concessão de infra-estruturas portuárias, a concessão da Silopor (que já foi adjudicada provisoriamente) e os dividendos extraordinários a gerar com a venda de reservas petrolíferas da empresa estatal Egrep. Em termos líquidos, o valor das receitas extraordinárias em 2014 será de 192 milhões de euros, já que é necessário subtrair ao total os custos do programa de rescisões por mútuo acordo na função pública, estimado em 227 milhões.

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